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Turismo de base comunitária, juventude quilombola e o resistir pela história

Allan Rodrigues Martins tem 24 anos, estuda turismo na Universidade Federal do Tocantins (TO) e é uma das lideranças jovens do Território Quilombola Kalunga do Mimoso, no município de Arraias (TO). Esta história é sobre Allan, sua comunidade e também sobre o Brasil.

Em 2019, Martins, alguns colegas da universidade e outros jovens Kalunga iniciaram o projeto “Turismo de Base Comunitária: uso sustentável do patrimônio natural e cultural da Comunidade Quilombola Kalunga do Mimoso” junto à sua comunidade em Arraias, que fica a cerca de 420 km de Palmas. Esse território está localizado em um dos biomas mais ameaçados do Brasil, o Cerrado, e, sendo no Tocantins, está dentro da Amazônia Legal. Comunidades tradicionais, como a comunidade do Allan, são verdadeiras protetoras do meio ambiente, agora também por meio do turismo de base comunitária. 

“A ideia do projeto surgiu de um desejo de levar os conhecimentos da faculdade para minha comunidade, para contribuir com o nosso crescimento e desenvolvimento em uma região tão ameaçada por grandes fazendeiros. O foco no turismo comunitário também foi uma forma que vi de fortalecer nossa organização social e nossas tradições culturais, especialmente para a juventude, o que também fortalece nossa história”, conta Allan

No projeto, há a inversão da lógica em que jovens deixam o campo para tentar a vida na cidade grande. No Território Kalunga, existem meninos e meninas que resistem pela sua história. Por meio do turismo comunitário, Allan e seus companheiros pretendem gerar oportunidades de trabalho e renda para a comunidade, que possui cerca de 300 famílias. Para isso, estão estruturando os serviços de hospedagem e alimentação oferecidos pelos moradores, o incentivo ao consumo dos frutos do Cerrado e outros alimentos locais, a comercialização do artesanato desenvolvido na comunidade, o serviço de guia para trilhas e cachoeiras, dentre outros. 

Além do aspecto de fortalecimento da economia local, o turismo também é uma forma de diálogo com os visitantes sobre a importância dos territórios tradicionais para a conservação ambiental e do respeito aos saberes ancestrais. Allan conta que eles também querem reafirmar para os quilombolas a lógica da conservação por meio do uso consciente dos recursos naturais. Sustentabilidade, nessa história, também é um aprendizado entre gerações. 

Durante o período de pandemia, as atividades do projeto concentraram-se na construção de uma sede para a recepção dos visitantes e fortalecimento da associação. Com a perspectiva de retomada das atividades, aos poucos e com cautela, o grupo já se prepara para finalizar o inventário do patrimônio natural e cultural, realizar capacitações para preparar os condutores locais e os receptivos, estruturar as trilhas e demais atividades do plano executivo do turismo e, assim, iniciar a experiência de receber os primeiros turistas no território. Experiência que vai além de uma lógica puramente econômica, já que a prática de um turismo responsável traz a riqueza das trocas interculturais e da vivência do Bem Viver.

Turismo de Base Comunitária e a descoberta de um país    

O Turismo de Base Comunitária, diferente de outros modelos encontrados no Brasil e no mundo, possui uma lógica que preza a vivência em um lugar e com sua gente, fundamentada no cuidado e no respeito. Nele, a interculturalidade é base para a construção de experiências que sejam valiosas tanto para quem recebe os visitantes como para quem visita uma comunidade tradicional. Para isso, são implementados protocolos que conduzem o turista à prática do respeito e da vivência aberta ao aprendizado e à escuta aos saberes ancestrais, entendendo que essa experiência acontece em sintonia com a valorização dos patrimônios naturais e culturais fundamentais para a construção de uma nação.

Nessa perspectiva, além de olhar, as pessoas podem vivenciar o ambiente ao redor, incluindo o aprendizado com as culturas locais e com as relações que se pode estabelecer com a natureza, compreender que diferentes modos de vida existem e são possíveis. “Nessas visitas, a gente consegue perceber a alegria gerada pelas crianças com suas  brincadeiras de rua, pelas conversas nas varandas e pelas diversas atividades ao ar livre desprendidas dos computadores e celulares. Conexões com a natureza e com as pessoas em um tempo mais gentil, diferente do nosso ritmo acelerado nas cidades, na lógica da produção intensa e da ansiedade gerada pela sociedade de consumo. A gente percebe a alegria de ter liberdade”, conta a assessora técnica do ISPN que acompanha o projeto, Silvana Bastos, que também é mestranda em Sustentabilidade junto a Povos e Territórios Tradicionais.

Segundo Allan, nessa prática sustentável, não há uma invasão e deturpação de tradições locais, ou um desgaste da natureza. Pelo contrário, ela é quem mostra a importância de conservar e respeitar a sociobiodiversidade local. Isso também é uma forma, segundo ele, de resistir contra o desmatamento cometido pelo agronegócio desordenado da região. “Não queremos que o turismo transforme a comunidade, mas que reconheça nossas culturas e tradições, que seja sustentável e mostre para quem vem de fora a potência que temos no Cerrado. Queremos que a comunidade seja a protagonista nessa atividade, e assim também conseguimos resistir contra a ofensiva de desmatamento vinda dos grandes [empreendimentos]”, avalia.

Allan quer seu território sempre com autonomia. E para isso, acredita na continuidade das atividades agroextrativistas para que sejam possíveis diferentes fontes de renda e a manutenção do modo de vida e da conservação ambiental. Para ele, o turismo é uma força que chega para contribuir com o desenvolvimento sustentável local, mas que não substituirá a trajetória da comunidade.

E quando se pensa o turismo dentro do Território Kalunga, também é preciso contar sobre a importância da conexão que existe entre quem ali chega e a própria história do país. A consciência sobre a importância da cultura do povo negro para a construção da nação e a necessidade de superarmos o racismo estrutural que ainda amarga nossa sociedade. É um convite para conhecermos melhor o Brasil: esse país negro, das danças sussa, bolé e do chorado, do tambor de crioula, das folias de reis e da fé  sincrética. Um país filho da luta de pessoas pela liberdade e por justiça para todos, sem distinção de classe, cor, etnia ou religião. 

O futuro é o comunitário 

“A emergência climática nos convida a repensar o mundo de hoje, a sociedade de consumo orientada pelo mercado, gerando tamanha desigualdade e destruição, não é um bom caminho para a humanidade. Queremos qualidade de vida, conforto e muita alegria, mas para isso ser possível para todos, o planeta exige da humanidade uma grande transformação e modos de vida compatíveis com a sustentabilidade”, comenta Silvana.

Conhecer comunidades que vivem de maneira sustentável há milênios nos leva a encontrar  soluções nas sabedorias ancestrais que têm no respeito ao meio ambiente caminhos de existência. A experiência do Território Kalunga conta sobre esse percurso de muita luta para conquistar os direitos e a proteção do território e, assim, poder cultivar a liberdade e autonomia do seu povo. Ensina ainda que inovações não necessariamente significam o enfraquecimento da identidade cultural e as tradições de um povo, somos seres de trocas. Que  nosso país pode ser mais solidário e comunitário, e que é possível encontrar forças na sua diversidade cultural e ambiental. Allan, os Kalunga e sua história ensinam que com o povo negro,  o Brasil é mais Brasil. 

O Projeto “Turismo de Base Comunitária: uso sustentável do patrimônio natural e cultural da Comunidade Quilombola Kalunga do Mimoso” recebe apoio do Fundo para a promoção de Paisagens Produtivas Ecossociais (PPP-ECOS), com financiamento do Fundo Amazônia. O PPP-ECOS é uma estratégia adotada pelo Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), saiba mais sobre a iniciativa clicando aqui. 

 

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