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Organizações brasileiras responsabilizam a União Europeia por desmatamento

Na COP27, sociedade civil chama atenção para o bioma Cerrado, para o equilíbrio climático global, traz novos dados e reivindica legislação de comércio internacional que possa ser realmente efetiva

O Cerrado brasileiro, a savana mais biodiversa do mundo e a segunda maior frente de desmatamento e conversão do planeta depois da Amazônia, já testemunhou o desmatamento e a conversão de ecossistemas de metade de seu território para produção massiva de commodities para exportação. 

O objetivo de um evento paralelo na 27ª Conferência do Clima (COP27) é enfatizar a regulamentação de produtos livres de desmatamento, considerando a legislação europeia em debate. A Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas 2022 acontece de 6 a 18 de novembro em Sharm El-Sheikh, Egito.

Na quinta-feira, dia 10, às 11h30 no horário local (6h30 em Brasília), o debate “Acordo UE-Mercosul e Regulamento de importação livre de desmatamento: desafios para o Cerrado e para a discussão de salvaguardas” será realizado no Brazil Climate Action Hub, organizado pelo Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN) em parceria com Fase, WWF-Brasil, IPAM, Instituto Cerrados e Rede Cerrado. O foco será os desafios para o Cerrado e novos dados sobre o abastecimento de água dentro do bioma conhecido como “caixa d’água brasileira”. 

Com a implementação de tal acordo, os riscos de abordagens focadas apenas na floresta podem criar uma pressão ainda mais considerável de destruição em ecossistemas não florestais, em suas comunidades locais e povos indígenas.

“A atenção do campo socioambiental e da sociedade geralmente reside nas florestas tropicais, embora biomas não florestais, como o Cerrado, cubram 57% do cinturão tropical do mundo”, comenta Guilherme Eidt, assessor de políticas do ISPN. No entanto, “para garantir a segurança climática, também é necessário proteger savanas e campos”.

Eidt explica que essas vegetações são “relevantes centros de endemismo e biodiversidade, e prestam um importante serviço para a regulação do clima, concentrando importantes sumidouros e estoques de carbono, especialmente abaixo do solo”. O estoque de carbono do Cerrado ultrapassa 13 bilhões de toneladas. Também abriga 5% da biodiversidade do planeta: são mais de 12 mil espécies de plantas, das quais 4 mil são endêmicas, e mais de 2.600 espécies de animais, sem contar as centenas de comunidades tradicionais ainda invisíveis nos mapas oficiais.

Ane Alencar, diretora de Ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), concorda com Eidt. “O Cerrado é um bioma estratégico para o Brasil. É gigante na produção de alimentos, mas também gigante na produção de serviços ecossistêmicos”, enfatiza, acrescentando que “a destruição do Cerrado ameaça não só a vida em um sentido mais amplo, incluindo a de povos e comunidades tradicionais, mas também a produção de alimentos”.

Cerrado em destaque

Na data de abertura da COP27, o Panda Hub realizou o evento “O papel das populações locais para proteger um dos maiores estoques de carbono e biodiversidade: o Cerrado”, com a participação do IPAM, WWF e Trase, em parceria com ISPN, Instituto Cerrados e a Rede Cerrado. Representando a Trase, Tiago Reis destacou a importância de incluir o Cerrado no escopo da legislação europeia contra o desmatamento.

“Nas regiões do Cerrado de onde a UE se abastece, 20% da conversão agrícola recente não seria coberta se apenas florestas e outras terras arborizadas fossem incluídas. Portanto, esse escopo da regulamentação da UE precisa ser expandido para todos os tipos de vegetação nativa”, afirma. [Leia mais sobre o evento que abriu a agenda brasileira na COP27 aqui].

O Cerrado é o segundo maior bioma do Brasil e da América Latina. Corresponde a cerca de 24% do território brasileiro, ocupando uma área total de mais de 2 milhões de km², mais extensa do que França, Portugal, Espanha e Itália juntos. Rica em água, contém nascentes de importantes bacias hidrográficas do Brasil, Paraguai, Argentina e Uruguai.

Cartas para a UE

As entidades chamam a atenção para a carta enviada às instituições políticas da União Europeia por comunidades locais organizadas por meio da Rede Cerrado, reconhecendo seus esforços na construção de legislação para conter o desmatamento no Sul Global e exigindo três ações ainda não contempladas no documento aprovado pelo Parlamento Europeu em Setembro. Para as comunidades locais do Cerrado, a legislação deve incluir ecossistemas naturais (adicionando ecossistemas não florestais), garantir transparência na origem dos produtos e exigir respeito aos direitos humanos.

Maria de Lourdes de Souza Nascimento, coordenadora da Rede Cerrado, espera ver uma legislação rígida aprovada pela União Europeia. “O desmatamento desenfreado quer destruir o ar que respiramos. Conheço a importância desse bioma em nossas vidas. Com a inclusão do Cerrado na legislação europeia, todos ficaremos fortalecidos. Precisamos conter o desmatamento na caixa d’água do Brasil”, afirma. A conservação da Amazônia também depende da saúde do Cerrado.

Outro documento importante a ser apresentado no evento paralelo é o “Manifesto pelo Desmatamento e Conversão Zero”, que lista os requisitos mínimos para atingir a meta de 1,5°C. O Observatório do Clima em conjunto com a sociedade civil brasileira e internacional estão instando o setor privado, especialmente as empresas globais de commodities agrícolas, bem como os governos dos países produtores e importadores, a adotar imediatamente políticas ambiciosas e eficientes de desmatamento e livre de conversão. Cortar o desmatamento e a conversão de ecossistemas naturais da produção de commodities agrícolas em larga escala e cadeias de suprimentos é fundamental e urgente nessa direção.

Guilherme Eidt, destaca que o Cerrado está em risco e precisa de atenção tanto quanto a Amazônia. “É importante que as regulamentações europeias assegurem a inclusão de outros ecossistemas naturais em seu escopo. O Parlamento Europeu aprovou um texto ambicioso que deve ser garantido no diálogo com as outras instituições europeias. Acreditamos em mais um modelo de desenvolvimento que gere renda a partir da conservação ambiental”, sugere Eidt.

Desmatamento de savana

Durante décadas, o Cerrado testemunhou o desmatamento acelerado e a conversão de ecossistemas para a produção de commodities. No entanto, a proteção do Cerrado é essencial para a conservação da biodiversidade global e do clima, bem como para a segurança alimentar local, bem-estar e abastecimento de água.

Dados recentes divulgados pela iniciativa Tamo de Olho revelaram que as autorizações de desmatamento foram emitidas por um órgão ambiental do estado da Bahia, na região nordeste do Brasil, mesmo que os requerentes não cumpram os requisitos legais. Isso significa que mesmo o desmatamento legal no Brasil pode apresentar algum grau de ilegalidade.

A área cultivada no Brasil triplicou entre 1985 e 2020, passando de 19 milhões de hectares para 55 milhões, segundo dados do Mapbiomas. Destes, 36 milhões de hectares são dedicados exclusivamente à soja, em uma área maior que a Itália. Mais da metade dessa área está localizada na savana brasileira, o Cerrado, que concentra 65% da soja associada ao desmatamento no país. Foram 17 milhões de hectares desmatados para soja nos últimos 36 anos. Da produção total, quase 15% da soja importada pela União Europeia é produzida no bioma central do Brasil. Nesse sentido, o que acontece em territórios tradicionais brasileiros é impactado diretamente pelas decisões tomadas em Bruxelas.

Rica em recursos naturais e repleta de comunidades locais, a savana mais importante do mundo desempenha um papel fundamental no desenvolvimento alternativo. No entanto, enfrenta ameaças que estão resultando em mortes nos rios e altos índices de conflitos rurais.

Com esses eventos paralelos, as organizações querem contribuir para o debate sobre direitos humanos, direitos territoriais e cumprimento da Declaração de Glasgow sobre Florestas e Uso da Terra em relação aos desafios climáticos. Também tem o objetivo de dialogar com representantes do setor privado e governos (sub)nacionais.

Serviço

Acordo UE-Mercosul e Regulamento de importação livre de desmatamento: desafios para o Cerrado e para a discussão de salvaguardas
10 de novembro às 11h30
Brazil Climate Action Hub


Foto: Acervo ISPN/Thomas Bauer 

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