Brigadistas comunitários Guajajara na TI Caru. Foto: Camila Araujo / Acervo ISPN

Brigadistas comunitários Guajajara na TI Caru. Foto: Camila Araujo / Acervo ISPN

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Fogo amigo: redes comunitárias enfrentam as chamas com saberes ancestrais e ação coletiva

Evento reuniu mais de 120 brigadistas voluntários e comunitários em Brasília no início de julho

Com a chegada da seca, os biomas brasileiros se tornam palcos de uma luta desigual: o avanço dos incêndios impulsionados por mudanças climáticas, ações criminosas e desmatamento; do outro lado, as brigadas voluntárias e comunitárias lutam com coragem para conservar a natureza e sistemas produtivos da agricultura das comunidades,  com experiência e sabedoria tradicional e, muitas vezes, escassez de recursos e pouca proteção.

Apesar da queda de 65,8% nas áreas queimadas entre janeiro e junho de 2025, em comparação com o mesmo período de 2024, e da redução de 46,4% no número de focos de calor, segundo dados do Sistema BDQueimadas, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), os incêndios florestais ainda geram preocupação. De norte a sul do país, indígenas, agricultores, voluntários — homens, mulheres e jovens — se mobilizam para proteger os territórios atingidos, com ou sem apoio governamental.

É o que mostra o evento “Brigadas em Rede:  Encontro de Fortalecimento e Articulação entre Brigadas Voluntárias e Comunitárias”, realizado em Brasília pelo Fundo Casa Socioambiental, com apoio do ISPN, Rede Nacional de Brigadas Voluntárias (RNBV), IPAM, BASE, Brigada Feminina Apinajé e o Programa COPAÍBAS, entre os dias 1 e 3 de julho, reunindo representantes de diferentes regiões do Brasil.

Encontro “Brigadas em Rede” reuniu brigadistas voluntários e comunitários entre 1 e 3 de julho em Brasília (Foto: Camila Araujo/Acervo ISPN)
Deputada Federal Célia Xakriabá (PSOL MG) participou de evento de brigadistas em Brasília (Foto: Camila Araujo/Acervo ISPN)

“Com o trabalho importantíssimo das brigadas voluntárias e comunitárias nos territórios é possível diminuir incêndios. Todos os esforços de prevenção e combate a incêndios são necessários para cobrir todo o território brasileiro, com suas diferentes paisagens e sistemas de governanças”, avalia Lívia Moura Carvalho, assessora técnica do ISPN e pesquisadora de Manejo Integrado do Fogo (MIF). 

De acordo com ela, a atuação do corpo de bombeiros militar e das brigadas florestais contratadas pelos órgãos públicos não são suficientes para lidar com incêndios, sobretudo em meio a mudanças climáticas. “As atividades preventivas do dia a dia, o monitoramento e a prontidão das primeiras respostas aos incêndios dependem da atuação das comunidades locais e dos voluntários.  Por isso, o reconhecimento e fortalecimento dessas brigadas é imprescindível para reduzirmos os problemas com incêndios no mundo.”

Lívia Moura Carvalho, assessora técnica do ISPN e pesquisadora de Manejo Integrado do Fogo (MIF) (Foto: Camila Araujo/Acervo ISPN)

Na Terra Indígena Apinajé, no Tocantins, a brigada feminina coordenada por Maria Aparecida Apinajé, conhecida como Cida Apinajé, é exemplo de protagonismo das mulheres. Criada em 2021, com 42 mulheres, hoje a brigada já reúne 52 integrantes. “Nosso trabalho é pela preservação do território, que é sagrado para nós. Nossa cultura, nossa medicina e nossa espiritualidade estão ligadas à terra”, explica Cida. As brigadistas indígenas atuam na prevenção e combate a incêndios florestais, educação ambiental e recuperação de áreas degradadas, com destaque para as nascentes. 

A relação do povo Apinajé com o fogo é milenar. Ele é utilizado no manejo da roça, na caça, nos rituais e no estímulo da frutificação de plantas nativas como pequi, buriti e caju. O trabalho da brigada busca aliar os saberes ancestrais com conhecimento técnico e científico. É um exemplo de resultado do trabalho do Manejo Integrado do Fogo (MIF), estratégia que combina uma série de ações, como o uso consciente do fogo e técnicas de prevenção e combate a incêndios. “A gente não quer apagar esse saber, mas fortalecer e usar com responsabilidade”, afirma.

Maria Aparecida Apinajé é brigadista e liderança na TI Apinajé (TO) (Foto: Camila Araujo/Acervo ISPN)

A abordagem do MIF (Manejo Integrado do Fogo) contempla o reconhecimento de práticas e saberes tradicionais, além da implementação de ações preventivas e supressivas, como a recuperação de áreas degradadas e o uso de queimas prescritas em determinados ambientes. Essas queimas controladas são estratégias eficazes para evitar grandes incêndios, reduzir a emissão de gases de efeito estufa e proteger ecossistemas sensíveis — como florestas, áreas prioritárias de conservação e zonas produtivas.

Em alguns casos, o uso controlado do fogo também pode estimular a frutificação de espécies nativas, como o cajueiro, o pequizeiro e a palmeira de buriti — exatamente como acontece no território de Cida.

“Nossos anciãos são transmissores de conhecimento. O fogo tem uma relação cultural forte com o meu povo”, explica ela, destacando que sua comunidade equilibra saberes tradicionais e conhecimentos “não indígenas” no manejo do fogo.

Na TI Apinajé, as brigadas florestais contratadas pelo Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (Prevfogo/Ibama) por um período de seis meses atuam em colaboração com as comunidades locais e brigadas voluntárias. “Essa união de fortalecimento vai trazer apenas benefícios para o povo Apinajé.”

Quem abriu caminho para o protagonismo de mulheres indígenas no combate a incêndios foram as mulheres Xerente. Também em 2021, a primeira brigada indígena feminina voluntária foi criada na TI Xerente, no Tocantins. “Fogo para nós não é só queima e incêndio. Usamos para fortalecer as plantas frutíferas, queimando a parte de baixo”, explica a brigadista Jucicleide Xerente. Com apoio dos anciãos e um calendário de queimas prescritas, as mulheres percorrem as aldeias com ações educativas.

“Descobri que nossa experiência pode inspirar outras mulheres. Foi um prazer muito grande ouvir que as brigadistas voluntárias Xerente são uma inspiração”, afirmou Jucicleide sobre a participação no evento Brigadas em Rede. “Eu vim sem medo de participar, porque eu quero ter conhecimento, por isso a gente precisa dominar o medo da gente.”

As brigadistas Jucicleide Xerente e Cida Apinajé em visita ao escritório do ISPN (Foto: Camila Araujo/Acervo ISPN)

Uma brigada comunitária pode ou não ser voluntária e é composta por pessoas que têm vínculo com o território e que atuam no local em que vivem ou onde desenvolvem atividades de subsistência. É o caso da brigada Guajajara, na TI Caru, no Maranhão. 

João Reis da Silva Guajajara, chefe de esquadrão da brigada, explica que ela foi formada após um grande incêndio em 2015. “A gente trabalha tanto com o combate quanto com a prevenção, educação ambiental e reflorestamento. Somos 22 brigadistas hoje, e durante seis meses atuamos contratados pelo Ibama.”

Nos primeiros meses de estiagem, a brigada atua com educação, organização e conscientização. Quando chega janeiro, o trabalho passa a ser voluntário, focado em plantio e reflorestamento. “Após o fim do contrato, temos o comprometimento de trabalhar por conta própria, enquanto indígenas e moradores do local. Porque é nossa casa”.  

Parte da brigada Guajajara com o chefe do esquadrão, João Guajajara (2º à direita), na TI Caru (Foto: Camila Araujo/Acervo ISPN)

A atuação da brigada Guajajara abarca as Terras Indígenas Awá, Alto Turiaçu e a própria Caru. Desde a criação, em 2015, o fogo descontrolado não havia afetado mais o cinturão ecológico no Maranhão. Até 2024, quando um incêndio atingiu o território. 

“Foi um incêndio causado por atividades ilícitas e criminosas. Mesmo que a gente sempre tenha trabalhado dentro e fora da comunidade com conscientização e uso adequado do fogo para evitar o prejuízo ao território.”

O chefe da esquadrão explica que o fogo também é uma questão cultural para o seu povo, para o manejo das tradicionais roças de toco e para manter as práticas de caça. “Antigamente, as pessoas faziam a queima da nossa roça tradicional para a preparação da terra. Hoje são os brigadistas, porque está muito mais seco hoje em dia.”  

A brigada cobre um território sensível, onde vivem os povos Guajajara e Awá Guajá. A gestão do fogo é feita com base no diálogo intercomunitário e na valorização das práticas tradicionais, como a “roça de toco”, sistema ancestral de preparo da terra. “Hoje em dia está mais seco, então o fogo é mais perigoso. Por isso os brigadistas assumem o manejo. Prevenir é tão importante quanto combater”, diz João.

A brigada na Caru executa um projeto com apoio do ISPN e financiamento do Projeto Floresta+ Amazônia. Além de fortalecer a ação da brigada, o projeto prevê um encontro de todas as brigadas indígenas do Maranhão em setembro. 

Magno Menezes, da Terra Indígena Canabrava (MA), relata que o fogo costuma avançar na sua terra a partir da BR-226. A brigada local surgiu em 2017 e foi estruturada em 2020. Desde então, o trabalho de monitoramento tem impedido novos incêndios. “A gente não quer só combater. Queremos evitar que o fogo comece. Esse encontro foi um combustível. Descobrimos que há leis que protegem as brigadas e aprendemos com a experiência de outros territórios”, diz.

Magno Menezes, da brigada comunitária Cana Brava (Foto: Camila Araujo/Acervo ISPN)

Cristiano Krahô, do povo Krahô (TO), atua numa brigada formada pelo Prevfogo, mas luta por autonomia. “Queremos uma brigada livre, que funcione o ano todo. Não é só combater, é restaurar, é cuidar. O evento foi muito importante, aprendi novas formas de agir com menos sacrifício.”

Estratégia e financiamento

A Estratégia Nacional do Voluntariado no Manejo Integrado do Fogo, realizada pelo IPÊ (Instituto de Pesquisas Ecológicas) e coordenada pelo MMA (Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima) em parceria com outros órgãos nacionais, tem o objetivo de ampliar e fortalecer a participação da sociedade no manejo integrado do fogo, reconhecendo contribuições de diferentes setores na proteção de territórios culturais e modos de vida. 

Para Lívia Moura, do ISPN, que participou do desenvolvimento de uma “Cartilha de Boas Práticas do Voluntariado”, a estratégia traz grandes avanços para o fortalecimento das brigadas que atuam voluntariamente no Brasil. 

A assessora do ISPN explica que o papel de organizações da sociedade civil  tem sido de apoiar brigadas por meio de financiamento de projetos comunitários. “As brigadas compram seus equipamentos, constroem suas estruturas, fazem suas rondas e aceiros nos territórios, recuperam áreas degradadas com o plantio de mudas e semeadura direta, entre outras ações”, diz Moura. 

É o caso do Fundo Ecos, que vêm apoiando a estruturação de brigadas por meio de projetos. “Retomamos o uso tradicional do fogo em 2013, com apoio do Fundo Ecos e ISPN. Hoje fazemos aceiros, cercamento de nascentes, monitoramento e queimas prescritas para manejo do gado e proteção dos buritizais”, explica Eldo Barreto, da associação Fecho de Clemente, oeste da Bahia, região que já conta com pelo menos 95 km de aceiros mantidos em áreas comunitárias.  

Em Correntina (BA), comunidades de Fecho de Pasto atuam na construção de aceiros (Foto: Raisa Pina/Acervo ISPN)

Em 2013, a associação Fecho de Clemente foi contemplada com apoio do edital do Fundo Ecos para a execução do projeto “Guardiões do Cerrado e nascentes assegurando a sustentabilidade socioambiental do Fecho de Pasto”. Desde então, uma parceria se estabeleceu entre os fecheiros e o ISPN.

Fecheiros de pasto, Eugênio Moreira e Eldo Barreto atuam com MIF para conservação do Cerrado no Vale do Arrojado e no Vale do Rio Corrente (BA) (Foto: Camila Araujo/Acervo ISPN)

A associação atua com MIF no Vale do Arrojado e no Vale do Rio Corrente (BA) e hoje empresta equipamentos e transporte para outras comunidades da região, para fortalecer redes de cooperação.

Na comunidade de Pedro II (PI), Aline Rodrigues integra o projeto Renascer, voltado à restauração ecológica. Ela participa da formação de uma brigada de jovens e encontrou inspiração no evento em Brasília. “Ainda não temos equipamentos, mas temos vontade. Estamos tentando capacitar 16 jovens para atuarem com prevenção e reflorestamento.”

Presidente da Associação Nova Terra, Rodrigues também é beneficiária do Fundo Ecos por meio de projeto aprovado no edital 35. 

No mesmo caminho, e também com apoio do Fundo Ecos, Jefferson Santos, da Associação dos Produtores Agroecológicos do Alto São Bartolomeu (Aprospera), localizada no Assentamento Oziel Alves III, explica que sua comunidade organiza uma brigada agroecológica após sucessivas perdas por incêndios criminosos. “Falta consciência e apoio. O encontro mostrou que não estamos sozinhos. Há parceiros, como o Fundo Ecos e o ISPN, que ajudam a criar redes e oferecem formação.”

O ISPN também tem articulado com diferentes atores e instituições para a implementação da Política Nacional do Manejo Integrado do Fogo (PNMIF, Lei 14.944/2024), acompanhando projetos de lei, políticas públicas e suas regulamentações “para que reflitam as necessidades das brigadas da melhor forma possível”, destaca Lívia.

Brigadistas parceiros com a equipe do Fundo Ecos e do ISPN (Foto: Camila Araujo/Acervo ISPN)

A troca de experiências em Brasília uniu brigadas federais, voluntárias e comunitárias. Entre as falas, a certeza de que o fogo não é só ameaça. Ele também é saber, tradição, ferramenta e parte da vida em muitos territórios. Mas sem apoio contínuo e políticas públicas estruturantes, quem protege a terra continua apagando incêndios com as próprias mãos — literalmente.

Texto por Camila Araujo/Assessoria de Comunicação do ISPN.

Autoria: Camila Araujo

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