Cerca de 9 mil indígenas participaram do 20º Acampamento Terra Livre, conforme divulgação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que organizou o evento realizado em Brasília (DF), de 22 a 26 de abril de 2024. O ALT, celebrando seus 20 anos de mobilização e resistência, é reconhecido como a maior assembleia dos povos indígenas do Brasil, consolidando-se como um espaço de convergência política, cultural e social, onde o movimento indígena fortalece suas lutas e demandas por direitos territoriais e socioambientais.
Com o lema, “Nosso marco é ancestral, sempre estivemos aqui”, o ATL 2024 concentrou suas discussões em protestar contra a Lei 14.701, também conhecida como a Lei do Marco Temporal, aprovada pelo Congresso Nacional em dezembro de 2023. Essa lei, dentre outras questões que afetam os direitos territoriais indígenas e ambientais, impõe um marco temporal para os processos de demarcação de Terras Indígenas.
O documento emitido durante o evento declara:
“Nosso tempo é agora, urgente e inadiável. Enquanto se discute marcos temporais e se concede mais tempo aos políticos, nossas terras e territórios continuam sob ameaça”.
Neste contexto, os indígenas exigem a demarcação das suas terras e a declaração da inconstitucionalidade da Lei do Marco Temporal. Leia aqui a carta na íntegra. Em dezembro do ano passado, a Apib, em parceria com os partidos políticos REDE e PSOL, protocolou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no Supremo Tribunal Federal (STF) buscando a suspensão e declaração de inconstitucionalidade da referida lei.
Críticas ao governo Lula pela morosidade nas demarcação de Terras Indígenas

Durante duas décadas, a regularização fundiária das Terras Indígenas (TIs) tem sido a principal pauta do ATL. Após um período de estagnação durante o governo Bolsonaro, criou-se uma grande expectativa de que o terceiro mandato de Lula retomasse os processos paralisados. No entanto, após quase dois anos de mandato, apenas oito TIs foram homologadas, apesar da promessa feita, desde a transição entre os governos, de que 14 seriam homologadas nos primeiros 100 dias da nova gestão.
Por decisão do movimento indígena, o presidente Lula não foi convidado ao ATL deste ano, como forma de chamar atenção para a insatisfação diante da lentidão nos processos. No entanto, em 25 de abril, uma comissão de 40 lideranças, acompanhadas pela ministra dos povos indígenas Sonia Guajajara e a presidenta da Fundação Nacional dos Povos Indígenas, Joenia Wapichana, estiveram no Palácio do Planalto em audiência com o presidente Lula e ministros para expressar suas críticas e exigir a urgência pela demarcação.
Um dos resultados cruciais foi a determinação do presidente em criar, em duas semanas, uma força-tarefa interministerial para analisar as questões jurídicas e políticas, com foco especialmente nas terras que não foram homologadas das 14 prometidas nos primeiros 100 dias de governo. Esta equipe interinstitucional será liderada pelo Ministérios dos Povos Indígenas, com participação da Secretaria-Geral da Presidência da República, pela Advocacia Geral da União (AGU), Ministério da Justiça (MJ) e do Desenvolvimento Agrário e da Agricultura Familiar (MDA). O principal argumento para o impeditivo das outras demarcações, conforme o governo, é a ocupação de não-indígenas dentro dessas terras.
Plenárias, marchas e eventos culturais

Foram cinco dias de intensas discussões com plenárias simultâneas. Além do espaço central que abordava temas de alcance mais amplo, as diferentes organizações indígenas regionais que compõem a Apib, conduziram diálogos específicos para suas áreas de atuação. Por exemplo, na tenda da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), foram abordadas questões cruciais para os povos indígenas da Amazônia Panamericana, como garimpo, proteção territorial e mudanças climáticas. Foi neste local também que as Guerreiras da Floresta da Terra Indígena Caru (MA) fizeram o lançamento do seu site oficial. Este coletivo de mulheres Guajajara foi muito aplaudido pelo trabalho que realiza de proteção territorial e sensibilização do entorno do território indígena. Saiba mais aqui.

A programação também contemplou debates sobre saúde, educação, demarcação de terras, gestão ambiental e territorial, mudanças climáticas, juventude, questões LGBTQIAP+, comunicação indígena e participação indígena em grandes eventos como Conferência das Partes (COP). Duas grandes marchas partiram do espaço da Funarte, sede do acampamento deste ano, em direção à Esplanada dos Ministérios, ampliaram as vozes dos 9 mil indígenas presentes e exibiram cartazes protestando contra a Lei 14.701, os empreendimentos que afetam os territórios, e a lentidão nos processos de demarcação.

Durante as noites, a programação ganhava fôlego com uma intensa agenda cultural, destacando os talentos dos artistas indígenas nos campos da música, das artes plásticas e da moda. Nomes como as Suraras do Tapajós, Nativos MC´s, Djuena Tikuna, Grandão Vaqueiro Fulni-ô, dentre outros, embalaram as noites culturais com músicas e batidas indígenas contemporâneas. Em um momento emocionante, as Suraras do Tapajós, um grupo de carimbó tradicional composto por mulheres indígenas do baixo Tapajós no Pará, prestaram uma homenagem ao povo Munduruku, que enfrenta pressões nos territórios devido ao garimpo ilegal, uma prática que resulta em mortes, contaminação e conflitos territoriais.
A tradicional venda de artesanatos indígenas do ATL também proporcionou uma pequena amostra da rica diversidade cultural dos povos presentes no evento, ao mesmo tempo em que gerava renda para essas comunidades.

No encerramento do Acampamento, Dinamã Tuxá, da coordenação executiva da Apib, declarou que o evento deste ano entrou para a história por dar voz às reivindicações, alcançando os escalões mais altos do governo federal.
“Nosso objetivo foi alcançado. Reafirmamos nosso compromisso com o texto constitucional e com a democracia. Precisamos que o Congresso pare de criar uma agenda anti-indígena. Precisamos da demarcação das terras e do cumprimento das funções institucionais pelo Executivo. Mas para isso, devemos manter nossa mobilização”, declarou Tuxá.
Mais apoios para a gestão ambiental e territorial indígena

O 20º ATL também celebrou o aumento significativo de apoio às iniciativas indígenas voltadas para a gestão ambiental e territorial. Além dos dois editais para o financiamento de projetos via a 2a Chamada do Fundo Podáali e Edital Dabucuri (parceria Cese/Coiab/Fundo Amazônia)foram lançados mais dois projetos que recebem apoio da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento (Usaid). Saiba mais aqui
Essas iniciativas são o “Nossa Terra, Nossa Mãe” e “Aliança dos Povos Indígenas pelas Florestas da Amazônia Oriental”. Ambos os projetos representam uma continuação da colaboração substancial entre associações indígenas e organizações indigenistas parceiras, visando fortalecer a conservação da sociobiodiversidade e promoção do bem-viver dos povos originários do Sul do Amazonas, Roraima, Maranhão, Pará e Tocantins.
O “Nossa Terra, Nossa Mãe” é liderado pelo Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB) em parceria com o Conselho Indígena de Roraima (CIR), Operação Amazônia Nativa (Opan) e Instituto Terra Brasilis (ITB). O projeto tem como foco consolidar a gestão territorial indígena integrada no Sul do Amazonas e em Roraima, cujo escopo abrange mais de 33 terras indígenas.
Por sua vez, o projeto “Aliança dos Povos Indígenas pelas Florestas da Amazônia Oriental: Conservar, Proteger e Restaurar” tem como objetivo contribuir para a proteção, conservação e restauração das florestas na região da Amazônia Oriental, abrangendo 14 terras indígenas nos estados do Maranhão, Pará e Tocantins. É executado pelo Centro de Trabalho Indigenista (CTI) em parceria com o Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN) e as organizações indígenas: Coordenação das Organizações e Articulações dos Povos Indígenas do Maranhão (Coapima) e Associação Wyty Catë das Comunidades Timbira do Maranhão e Tocantins.
A mesa de lançamento contou com representantes da iniciativa, que enfatizaram nas suas falas a importância do apoio fornecido pela Usaid a esses projetos.
Nilcélio Diahui, da Organização dos Povos Indígenas do Alto Madeira (Opiam), ressaltou o quanto esse projeto representa o fortalecimento das redes de organizações indígenas amazônidas pela implementação da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI). “Que possamos fortalecer cada vez mais nossas bases e esperamos, ao longo destes cinco anos de projeto, ver na prática como as nossas iniciativas estão implementando a PNGATI”, afirmou.
Edinho Macuxi, tuxaua geral do Conselho Indígena de Roraima (CIR) destacou que a iniciativa é parte do compromisso assumido com as comunidades indígenas. “Nossa parceria não se resume só em recurso financeiro, mas a uma parceria política, de enxergar o presente e o futuro das novas gerações que vão viver e se alimentar em nossos territórios, garantindo sua economia e autonomia política e social para continuar vivendo uma vida de qualidade”, completou.
Marcilene Guajajara, coordenadora da Coapima, ressaltou que, por meio do projeto, a coordenação está continuando as iniciativas de gestão que barram as pressões dos povoados não-indígenas que circundam os territórios indígenas. “Tivemos muitos resultados positivos, como os microprojetos, que ajudaram na segurança alimentar de muitas famílias”, destacou. A coordenadora também agradeceu aos parceiros que contribuem para o fortalecimento do movimento indígena no Maranhão. “Quero agradecer nossos parceiros de longas datas que ajudam com a nossa luta, como o ISPN, o CTI, e agora a Usaid, pois permitem que nossos trabalhos cheguem na base”, completou.

Oscar Apinajé da Associação Wyty Catë lembrou que a região Timbira, já dentro do bioma Cerrado, sofre com a devastação do agronegócio e que ações do projeto ajudam a impedir essa pressão sobre os territórios cerratences. “Temos nossa cultura, nossa terra, tudo que damos para a terra ela nos devolve, por isso temos que ter responsabilidade em como cuidamos dela, em como produzimos nossos alimentos, não precisamos envenenar a terra. Esse projeto nos auxilia nesse cuidado, respeitando nossos conhecimentos, nossas políticas internas e nosso jeito de viver”, enfatizou.
Mark Carrato, diretor da Usaid no Brasil, afirmou que as parcerias estabelecidas com a Usaid, que apoia a luta indígena, impactam diretamente em benefícios para toda a humanidade. “Reconhecemos o papel dos povos indígenas na luta contra as mudanças climáticas e na conservação da biodiversidade”, ressaltou.
Toya Manchineri, coordenador executivo da Coiab, falou da importância das parcerias firmadas que beneficiam os territórios da Amazônia brasileira. “O IEB, ISPN, OPAN, CTI, são parceiros importantes da Coiab Esses projetos visam regiões específicas da Amazônia, e isso é fruto de parcerias que ajudam a levar os recursos diretamente à base, fortalecendo cada vez mais as nossas organizações da rede da Coiab”, afirmou.
O ISPN no ATL 2024
Como parceiro do movimento indígena do Brasil, o ISPN apoiou a realização do ATL 2024, fornecendo recursos para a infraestrutura física do acampamento. Além disso, por meio dos projetos “Aliança dos Povos Indígenas pelas Florestas da Amazônia Oriental: Conservar, Proteger e Restaurar” e “Paisagens Indígenas”, com financiamento da Iniciativa Internacional do Clima e Florestas da Noruega (NICFI), também contribuiu para a participação dos indígenas do Maranhão no ATL. Este estado se destacou por trazer uma das maiores delegações de indígenas para a edição deste ano.
Ademais, a equipe do Programa Povos Indígenas (PPI) do Instituto, acompanhou de perto as discussões sobre temas ecossociais que envolvem os povos indígenas, incluindo gestão ambiental e territorial, educação escolar indígena, economia da floresta, dentre outros. João Guilherme Nunes Cruz, coordenador do PPI, destacou: “Neste ano em que se completam 20 anos do ATL, penso que a principal mensagem que fica para todos nós é que a luta pelos direitos territoriais dos povos indígenas continua premente e que não podemos aceitar quaisquer retrocessos na garantia desses direitos. Neste sentido, por meio de seus projetos, articulações e estabelecimento de parcerias com a sociedade civil e, sobretudo, com as organizações indígenas, o ISPN têm buscado sistematicamente fortalecer as estratégias de gestão ambiental e territorial dos povos indígenas parceiros, seus processos de lutas por consolidação de seus direitos, seus projetos de conservação, restauração ambiental e produção sustentável de alimentos, a permanência de estudantes indígenas no ensino superior, dentre outras iniciativas. Entendemos que todo esse fortalecimento, vindo das bases, das comunidades e suas lideranças, dialoga diretamente com a luta maior pelos territórios, que por sua vez devem estar garantidos e consolidados, sob governança de quem tem direito sobre os mesmos, os povos originários”, destacou João Guilherme.

Foto: Acervo ISPN
O ISPN por meio do Programa Indígena de Permanência e Oportunidades na Universidade (Pipou), também contribuiu para a presença de 31 estudantes indígenas no ATL que são da Universidade do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), proporcionando a eles a oportunidade de desenvolver a sua formação política no âmbito do movimento indígena.