Com um histórico admirável de cumprir com tudo o que promete, o Cerrado concede sua primeira entrevista como candidato e aproveita para fazer campanha: “Pense em mim na hora de votar!”
Condenado há mais de setenta anos por um crime não cometido e cumprindo pena perpétua de trabalho dedicado ao agronegócio, o agora candidato às eleições Cerrado se diz injustiçado e reivindica sua liberdade. Em entrevista inédita, o Cerrado denuncia que tem sido vítima de tortura pelo poder público e pela iniciativa privada: “Tiraram minha diversidade alimentar e me obrigam a comer soja o dia inteiro. Não suporto mais nem o cheiro. Também me submetem a longas sessões de pisoteio de gado! Parece que estou constantemente em um pesadelo, gritando por socorro sem ninguém me ouvir”, revela com exclusividade.
A sentença ao bioma foi proferida em meados da década de 1950, quando o agronegócio começou a se desenvolver no centro do Brasil e não parou mais. Para poder avançar, a monocultura articulou uma estratégia política que condenou o Cerrado à tortura e ao cerceamento de sua liberdade natural. “Não houve crime da minha parte, mas tiveram que inventar uma mentira para que pudessem se aproveitar de mim. Disseram que meu solo não era bom, mas não param de aumentar a colheita de grãos”, denuncia.
Ele entra na sala da entrevista e surpreende a todos: é um senhor maduro de milhões de anos, de baixa estatura, coluna torta, mas com raízes de mais de 30 metros que foram difíceis de serem organizadas na sala pequena da reportagem. Indignado mas de cabeça erguida, o candidato Cerrado disputa as eleições e entra para a história como o primeiro bioma a tentar uma vaga na Câmara Federal, ao mesmo tempo em que luta contra sua condenação injusta ao agribusiness. Nesta entrevista exclusiva, o candidato rebate fake news a seu respeito, abre o jogo sobre o que de fato se passa no centro do Brasil e promete uma revolução política ambiental a partir de 2023.
Por que você está preso?
Eu não sei porque estou preso entre soja e gado. É uma sentença injusta. Não gostavam do meu tronco retorcido, minha casca grossa, minha folha larga. Não gostavam que eu tivesse estatura menor e que perdesse minhas folhas no inverno para me fingir de morto e economizar água. Não gostavam da minha cor vermelha e dos meus pedregulhos. Mas gostaram muito do meu terreno plano e das minhas fontes de água, que poderiam favorecer suas lavouras. Para explorar minhas riquezas contra minha vontade, tiveram que inventar uma história de que eu não era fértil, que meu solo não era bom. Veja se é possível isso! Eu, a savana mais biodiversa do mundo! Como é que falam que minha terra não é boa? E ainda não têm vergonha na cara, porque não param de colher soja. Então, objetivamente, eu te respondo: estou preso por uma fake news que inventaram sobre mim.
E o que você tem a dizer a quem acredita nessa fake news?
Apenas que eu sou responsável por 5% de toda a biodiversidade do planeta, sendo que metade é exclusiva minha. Eu faço fronteira com todos os demais biomas brasileiros, exceto os Pampas, correspondendo a 24% do território brasileiro. Eu estou presente em 11 estados brasileiros! Até São Paulo tem Cerrado, você sabia? Das 12 bacias hidrográficas mais importantes do país, 8 nascem de mim. Se eu morrer, você também morre, porque sem água não há vida. Eu abriga os aquíferos Guarani, Bambuí e Urucuia, sendo que o Guarani é o segundo maior reservatório subterrâneo de água do mundo. Não quero me gabar, mas minha importância hidrológica e energética é impressionante. Sou responsável por 70% da vazão do Rio São Francisco e 47% da vazão da bacia do Rio Paraná que abastece a hidrelétrica de Itaipu. Minhas águas são importantes também para Bolívia, Paraguai, Argentina e Uruguai. Sem contar que eu estoco cerca de 13,7 bilhões de toneladas de carbono e abrigo milhares de povos, comunidades tradicionais e agricultores familiares.
Essa sua prisão é realmente ruim? O que se fala é que o Brasil todo está ganhando com o avanço do agronegócio no Cerrado.
Ganhando o quê? Estão é perdendo água, alimento, biodiversidade e equilíbrio climático. Eu falo isso há tempos. Quando tudo acabar, não tem como chorar. Mas ainda há tempo para frear o desmatamento, recuperar áreas degradadas e valorizar a economia da sociobiodiversidade.
Como?
Votando em mim nessas eleições! #VotePeloCerrado [ele fala enquanto sinaliza a hashtag com os dedos floridos de ipê branco e um sorriso no rosto]
Mas você não gosta de ser destaque nas exportações nacionais?
Eu confesso que me sinto torturado todos os dias. Sofro com o pisoteio de gado e com o trabalho compulsório de me dedicar à monocultura de grãos. Tiraram minha diversidade alimentar e me obrigam a comer soja o dia inteiro. Não suporto mais o cheiro de soja, quero é minha cagaita, minha mangaba, minha lobeira e todas as outras milhares de espécies que eu tinha; quero os animais e os povos que se alimentam delas e que cada dia estão em menor número. Vou te falar que não estou sozinho. Eu sou muitos, sou uma legião, milhares de comunidades tradicionais que sentem o mesmo que eu. Estamos falando de indígenas, quilombolas, quebradeiras de coco babaçu, pescadores artesanais, comunidades de fundo e fecho de pasto e vários outros segmentos tradicionais.
O que você quer exatamente?
Eu quero minha liberdade de volta, quero ser quem eu sou, a savana mais biodiversa do mundo, que garante água, alimento, cultura e segurança climática para as populações. Não peço nada demais. Não entendo como as pessoas veem as tragédias climáticas acontecendo e não entendem que estão diretamente relacionadas com o desmatamento que faz em mim e em minha companheira Amazônia, outra guerreira. Queremos a liberdade de sermos quem somos, natureza biodiversa!
Você, como um candidato do centro do Brasil, o que acha que é preciso mudar?
Só no primeiro semestre de 2022, desmataram de mim uma área do tamanho do Distrito Federal, cerca de 472.816 hectares. Você sabia que eu perco 2 mil hectares de vegetação nativa por dia? As áreas privadas representaram 78,9% do desmatamento no bioma. Basta! Eu quero ter autonomia sobre meu território novamente, quero ver árvores brotarem e as comunidades felizes de novo. Nos últimos 36 anos, mais de 16 milhões dos meus hectares foram transformados em soja. É um bom alimento, mas não pode ser o único! Só de pensar já me dá náusea.
E como veio a ideia de se candidatar às eleições?
Depois que vi tantos candidatos usando meu nome em vão – e usando mal! – pensei que não tinha escolha senão entrar na disputa política real. Foi difícil no início, tivemos que consultar diversas equipes jurídicas, porque nenhum bioma havia sido candidato antes, mas minhas advogadas conseguiram uma brecha para garantir minha disputa. Entrei para ganhar! Nesse mundo de candidatos que apresentam promessas falhas, eu tenho a meu favor minha história de promessas sempre cumpridas: eu garanto água, comida, cultura, energia e equilíbrio ambiental. Não tem pessoa com melhor histórico que eu!
E quais são suas principais promessas?
É preciso mudar a política econômica ambiental. Isso se garante com tolerância zero ao desmatamento, recuperação de áreas degradadas usando rede de sementes das comunidades tradicionais, e incentivo ao fortalecimento da economia dos povos, comunidades tradicionais e agricultores familiares. Quem me der seu voto pode ter certeza que lutarei com troncos e flores para não deixar projetos anti-ambientais e anti-indígenas serem aprovados na Câmara Federal. #VotePeloCerrado