Um grupo de mulheres indígenas do povo Guajajara trabalha para valorizar o protagonismo feminino na conservação da biodiversidade; na recuperação de áreas degradadas e no fortalecimento das comunidades. Essa iniciativa ocorre na Terra Indígena (TI) Araribóia, em Amarante do Maranhão (MA), com a atuação conjunta de mulheres de quatro aldeias do território: Lagoa Quieta, Chupé, Novo Funil e Bezerra.
“Trabalhamos em coletividade para termos o protagonismo em nossas histórias, para sermos visibilizadas em nossas comunidades”, define a professora e conselheira fiscal da União das Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira (UMIAB), Raymara Guajajara, sobre as ações estratégicas dessa articulação formada pelas indígenas no âmbito do projeto Mulheres Guajajara: Proteção da Floresta e dos Saberes.
Executada pela Associação Comunitária Nairuy-Taw da TI Araribóia, com parceria do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN) e apoio do Projeto Floresta+ Amazônia, a iniciativa tem financiamento do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) e Fundo Verde para o Clima (Green Climate Fund – GCF).
As mulheres estão envolvidas em atividades que incluem oficinas de gestão de projetos, instalação de galinheiros, construção de canteiros de mudas, implementação de Sistemas Agroflorestais (SAFs), formações em medicinas tradicionais e arte indígena conduzidas pelas mestras dos saberes e restauração ecológica de nascentes do Rio Buriticupu. “Essas ações são feitas há muito tempo por nós, mulheres Tenetehara, em nosso território, mas quando nos organizamos em um coletivo como esse, ganhamos mais potência e nos articulamos melhor, principalmente para manter a vida de um rio tão importante para nós, que é o Rio Buriticupu”, comenta a liderança indígena, professora, artesã e coordenadora local do projeto, Marina Guajajara.
O Butiricupu é um importante elemento da cultura do povo Guajajara da região, a ligação com o rio é ancestral. A denominação faz alusão aos buritis que se espalham pelo curso das águas e ao cupuaçu, que cresce em abundância nas áreas de mata ao redor. Mas a vida do afluente é ameaçada pelo desmatamento promovido próximo de suas nascentes, que retira a mata nativa para a expansão da monocultura de soja e eucalipto, e abertura de áreas para a pecuária extensiva nas proximidades do limite do território.
“Falar da importância do rio é falar também sobre a memória da nossa ancestralidade. Além de abastecer as comunidades e manter a vida da floresta, é nas margens do rio Buriticupu que as mulheres se reúnem para coletar frutos para alimentação, sementes para o artesanato e também realizar pescarias coletivas. Mas o rio está secando por conta de todas essas ameaças e as nossas práticas tradicionais estão em perigo. Precisamos combater esse cenário, então, restaurar as margens e nascentes do rio é uma preocupação que move o nosso projeto”, explica Marina.

Além de mobilizar a comunidade das aldeias participantes do projeto e entre as demais aldeias no território Araribóia, a articulação das mulheres tem agregado apoio de fora: dentre as mais de 1.300 mudas de árvores já implantadas pelo projeto, 169 foram doadas pela Secretaria Municipal de Meio Ambiente de Amarante do Maranhão e 500 pelo Viveiro Florestal-CESTE/UEMA/FAPEAD. As mudas restantes foram produzidas no próprio território, sendo 131 mudas doadas pelo PrevFogo (Brigada Federal Indígena) e 150 foram produzidas por grupos das viveiristas, ambos da aldeia Juçaral; mais de 350 mudas foram produzidas no viveiro da aldeia de Lagoa Quieta.
“No SAF, tivemos a preocupação de plantar árvores nativas do nosso território e importantes para o povo Guajajara, mas, também, tivemos o olhar de trazer algumas árvores que servem para a nossa alimentação e para a medicina indígena. Dentro do SAF, hoje, a gente consegue ver uma beleza de variedade de plantas e mudas de árvores. Já colhemos feijão e maxixe, teremos futuramente a mandioca e outros alimentos”, explica Marina Guajajara.

O agroecólogo e consultor do ISPN para o projeto, na restauração produtiva e ecológica, Guel Bernucci realiza com as mulheres oficinas sobre o tema e executa momentos práticos de plantio na implementação e manejo dos SAFs, que serão compostos ao todo por quatro hectares produtivos distribuídos nas aldeias — algumas partes com irrigação — e quatro hectares de restauração ecológica em áreas de nascente.
“Estamos trabalhando com cerca de 70 a 80 espécies diferentes, não só de árvores, mas de outras formas de vida não arbóreas, que também são chave nos Sistemas Agroflorestais. As mulheres já têm um trabalho com fitoterápicos, e agora estamos inserindo no sistema as espécies de interesse medicinal, além daquelas utilizadas para a alimentação, produção de artesanatos, usos tradicionais e ritualísticos, promovendo um resgate biocultural”, explica Bernucci sobre a biodiversidade e diferentes funções do sistema.

Dois módulos da formação em Gestão de Projetos já foram realizados, com o último módulo previsto para ocorrer na finalização do projeto ano que vem. O cientista ambiental e consultor do ISPN nesse componente, Marcos Pinheiro, ressalta que a abordagem das oficinas foi pensada justamente para desmistificar o tema, aproximá-lo do cotidiano e auxiliar a enfrentar um dos maiores gargalos das associações indígenas: a dificuldade com a prestação de contas.
“Trabalhamos com uma linguagem não indígena, um conhecimento ocidental, e o desafio foi traduzir isso de uma forma acessível, respeitosa e aplicável na realidade deles Essas formações não só instruem a fazer a prestação de contas de um projeto específico, mas criam uma base para que as comunidades possam acessar novos editais e conduzir outras iniciativas no futuro, com mais segurança e independência”, explica o consultor.
A restauração é o item principal da iniciativa, tendo a segurança alimentar da comunidade e autonomia do coletivo na condução das propostas que submetem como importantes resultados das ações estratégicas. Ademais, as áreas produtivas vão fornecer alimento para as galinhas criadas pelas mulheres. Após a conclusão dos cursos de avicultura e manejo sustentável de galinhas, as mulheres, com apoio da comunidade e Prevfogo, estão na etapa de construção dos galinheiros e dos viveiros de mudas que alimentarão futuramente a expansão dos SAFs e a importante etapa de recuperação da cabeceira do Rio Buriticupu.
“Participei do processo inicial de elaboração do projeto, auxiliando o coletivo, e durante a construção, elas trouxerem sobre a restauração de áreas degradadas e nascentes, e, também, a respeito da segurança alimentar das comunidades. Esses itens são diretamente fortalecidos por meio dos SAFs e manejo das galinhas. Além disso, com o curso de Gestão de Projetos, já observamos lideranças entre as mulheres que estão se empoderando de todos os processos que compõem uma iniciativa como essa”, continua Pinheiro.

Autonomia e restauração
A conselheira da saúde indígena e participante das oficinas, Lucimar Guajajara endossa que aprender as partes burocráticas que envolvem a gestão de um projeto empodera as associações na condução das iniciativas locais. “Já estamos pensando nos futuros projetos, quando aprendemos a gerir todas as etapas e detalhes, não ficamos tão dependentes de caraíu (o não indígena) para conseguir tocar, pois estamos consolidadas para fazermos juntas, como coletivo”, diz.
Para ela, o Floresta+ Amazônia na TI Araribóia fortalece a autonomia das mulheres e também atua diretamente na questão da recuperação da biodiversidade no território, que sofre pressões da pecuária e agricultura extensiva dentro e no entorno. “Hoje a gente sofre as consequências do desmatamento gerado pelos fazendeiros que prensam nossa TI. Afeta nossos rios, afeta o clima. Nossos filhos e netos não vão mais ver aquilo que perdemos, então nossa batalha é para recuperar. Um dia todos vão entender nossa luta, vão sentir falta das árvores e do ar”, declara Lucimar Guajajara.
Nesse sentido, a cacica, parteira e liderança indígena Maria Santana da Silva, que se estabeleceu com a família na Lagoa Quieta ainda nos anos 70, relembra a saudade que sente “da frieza do clima no território, dos pássaros cantando com mais frequência no final do dia. É por isso que faço parte desse trabalho de reflorestamento com as mulheres, é um trabalho rico, que podemos mostrar para todos e, principalmente, para nossas crianças”, diz.

Para o povo Guajajara, principalmente para as mulheres, a vida do Rio Buriticupu significa a continuidade desses saberes ancestrais e de todo um ecossistema que depende da sua sobrevivência. A cacica continua “o que nos fortalece é a garantia do nosso alimento e a garantia de uma terra que continua falando sua língua materna, de um povo que continua usando seus cantos e fazendo suas festas. O indígena sem o rio sofre, quando vejo que vamos reflorestar a nascente do Rio Buriticupu, lembro do quanto esse rio era saudável e forte, com muito peixe, sem veneno”, finaliza Maria Santana.
O Buriticupu nasce na serra do Tiracambu, em Amarante do Maranhão, sendo o principal afluente do Rio Pindaré, percorre territórios da Amazônia maranhense, abastece nascentes e sustenta a biodiversidade. Ele é uma fonte de vida e de alimento, sendo um elemento importante para a continuidade dos saberes ancestrais. Além disso, o rio tem grande relevância para os grupos indígenas em isolamento voluntário do povo Awá Guajá, que dependem das águas, das matas e dos ciclos naturais dessa região para garantir sua sobrevivência e manter seu modo de vida tradicional, livre de interferências externas.
A assessora técnica do Programa Povos Indígenas (PPI) do ISPN, Regilma de Santana acompanha as atividades do Floresta+ Amazônia nas comunidades e reforça que as mulheres assumem no território um lugar de liderança, como cacicas, professoras, enfermeiras e produtoras de alimentos, além de serem guardiãs de saberes ancestrais saberes a partir da vivência com a floresta
“Para nós, é fundamental ter uma iniciativa como essa protagonizada e conduzida por mulheres no território, pois temos a identidade da mulher Tenetehara em todas as etapas do projeto. O Floresta+ na TI Araribóia é um espelho do que já existia, pois a agroecologia e restauração têm como base a sabedoria ancestral. O projeto vem fortalecendo esses saberes ancestrais e ampliando as atividades que já fazem parte da vida e dos valores Tenetehara”, completa Regilma de Santana.
O ISPN conduz outras três iniciativas do Floresta+ Amazônia no Maranhão, com povo Guajajara na Terra Indígena Caru e famílias quilombolas nos municípios de Anajatuba e Santa Rita.
