Lideranças do Mosaico Gurupi com a ministra Marina Silva, na cerimônia de reconhecimento do Mosaico Gurupi. Foto: Andreza Baré/Acervo ISPN
Lideranças do Mosaico Gurupi com a ministra Marina Silva, na cerimônia de reconhecimento do Mosaico Gurupi. Foto: Andreza Baré/Acervo ISPN
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Mosaico Gurupi une Terras Indígenas e Unidade de Conservação em novo modelo de proteção ambiental
Com protagonismo indígena e inovação jurídica, Mosaico Gurupi inaugura nova fase na governança de áreas protegidas no Brasil
Após uma década de mobilização e articulação política, o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) oficializou, em 18 de julho de 2025, o reconhecimento do Mosaico Gurupi — um marco histórico que inaugura uma nova interpretação legal na política ambiental brasileira, ao reconhecer um mosaico composto por apenas uma unidade de conservação (UC) em interface com outras de áreas protegidas em maior número, que no caso do Gurupi, são as terras indígenas.
A formalização, realizada durante a cerimônia de comemoração dos 25 anos do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC), na sede do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), em Brasília (DF), consolida um território de aproximadamente 46 mil km² entre os estados do Maranhão e Pará, de grande importância socioambiental, formado pela Reserva Biológica do Gurupi (Rebio Gurupi) e seis Terras Indígenas: Araribóia, Caru, Rio Pindaré, Alto Turiaçu, Awá e Alto Rio Guamá. O novo entendimento jurídico, fruto de um parecer inédito da Advocacia-Geral da União (AGU), reconhece a gestão integrada já praticada no território e abre precedentes para que outras regiões com características socioterritoriais semelhantes também sejam reconhecidas.
Conhecimentos ancestrais como tecnologia viva para conservar a Amazônia
Cerca de 40 lideranças indígenas, representantes das comunidades tradicionais do Mosaico Gurupi, viajaram durante dois dias de ônibus até Brasília para acompanhar a cerimônia de reconhecimento desta que é uma das regiões mais biodiversas — e também mais ameaçadas — da Amazônia. Para o cacique Antônio Wilson Guajajara, da Terra Indígena Caru, e secretário executivo do Conselho do Mosaico Gurupi, a conquista é resultado direto da força coletiva:
“Estamos aqui lutando por todas as formas de vida que ainda resistem nesses territórios. Cabe a nós manter essa aliança de forças se queremos viver com floresta, com água, com ar. Tudo o que queremos é continuar sendo quem somos e seguir lutando também por aqueles que não conseguem chegar até esses espaços de decisão”, afirmou o cacique durante o evento.
Cacique Antônio Wilson Guajajara discursando para o evento que reconheceu o Mosaico Gurupi. Foto: Mauro Siqueira/Coletivo 105
Em sua fala na cerimônia, a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, afirmou que o reconhecimento do Mosaico Gurupi é um tributo à vida, pois simboliza uma mudança profunda na forma com que concebemos a proteção ambiental: reconhecendo os povos indígenas e as comunidades tradicionais como os melhores técnicos, os melhores cientistas, os melhores servidores da floresta.
“São eles quem garantem, com seus modos de vida e saberes ancestrais, a conservação da biodiversidade, das águas e do equilíbrio climático. Essa sabedoria é uma tecnologia extraordinária, viva, que precisa ser respeitada e valorizada”, destacou a ministra.
Ministra Marina Silva, ao lado de Mauro Pires, presidente do ICMBio, durante a cerimônia de reconhecimento do Mosaico Gurupi. Foto: Andreza Baré/Acervo ISPN
Avanço legal inédito: Terras Indígenas reconhecidas como áreas protegidas
A formalização do Mosaico Gurupi representa um marco na política ambiental brasileira ao inaugurar uma nova interpretação legal para mosaicos de áreas protegidas. Até então, o Decreto nº 4.340/2002, que regulamenta o SNUC, era lido de forma restritiva, exigindo ao menos duas unidades de conservação (UCs) formais para constituir um mosaico. Essa interpretação inviabilizava o reconhecimento do Gurupi, cuja estrutura se baseia principalmente em Terras Indígenas.
O entendimento começou a mudar a partir de uma intensa articulação envolvendo o ISPN, o Conselho Gestor do Mosaico Gurupi, a Rede de Mosaicos de Áreas Protegidas (Remap) e lideranças indígenas, junto a órgãos como o ICMBio, o MMA, o Ministério dos Povos Indígenas (MPI), a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e o Ministério da Igualdade Racial. Como resultado, foi emitido um parecer jurídico inovador (nº 0018/2025/CPARF/PFE-ICMBIO/PGF/AGU), que propôs o chamado “giro empírico-pragmático” na interpretação da Lei do SNUC, reconhecendo a realidade prática de gestão integrada já existente no território.
Protagonismo indígena na governança dos mosaicos
Imaíra Guajajara e Jacirene Guajajara, da TI Araribóia (MA), acompanham os discursos da cerimônia de reconhecimento do Mosaico Gurupi. Foto: Mauro Siqueira/Coletivo 105
Outro avanço significativo é o modelo de governança que o Mosaico Gurupi inaugurou. A Portaria GM/MMA 1.443, de 18 de julho de 2025, que reconhece o Mosaico Gurupi e seu Conselho Consultivo, permite que a presidência dos conselhos de mosaicos possa ser ocupada também por lideranças indígenas, rompendo com a exigência anterior de que apenas chefes de unidades de conservação poderiam assumir essa função. Esse aspecto, além de reconhecer as características políticas e socioambientais do Mosaico Gurupi, pode servir de exemplo para modelos de governança para outros mosaicos e adequações nas normativas que regem a política de gestão integrada de áreas protegidas. Para o representante da Remap, Marcos Pinheiro, o novo marco traz entendimentos mais justos e condizentes com as realidades dos territórios.
“O Mosaico Gurupi promoveu uma evolução na base legal dos mosaicos. Isso abrirá caminhos para outras regiões com forte presença indígena, como o norte do Pará e o Rio Madeira”, afirmou.
Gestão integrada: saberes que se encontram
Olímpio Guajajara da TI Araribóia, em primeiro plano, e Walber Tembé, da TI Alto Rio Guamá, em segundo plano, durante a cerimônia de reconhecimento do Mosaico Gurupi. Foto: Mauro Siqueira/Coletivo 105
A trajetória do Mosaico Gurupi é marcada por mais de dez anos de construção coletiva entre povos indígenas, a Rebio Gurupi, organizações da sociedade civil, instituições de ensino e pesquisa e órgãos governamentais. Foi dessa articulação que nasceu a proposta de criação do Conselho Gestor do Mosaico Gurupi, responsável por promover uma gestão integrada e participativa das áreas protegidas.
Atualmente, o Conselho é composto por representantes das terras indígenas e comunidades tradicionais do Mosaico, do ICMBio, da Funai e de organizações como ISPN e Museu Goeldi, entre outras. Sua estrutura é dividida em Grupos de Trabalho (GTs) com foco em quatro eixos: Educação e Cultura; Proteção Territorial; Conservação e Restauração Ambiental; e Políticas Públicas. A Secretaria Executiva é exercida conjuntamente pela Rebio Gurupi e pela Associação Indígena Wirazu dos Guajajara da TI Caru, em um modelo de co-gestão que valoriza saberes tradicionais e técnicos.
A analista ambiental do ICMBio lotada na Rebio Gurupi, Eloísa Mendonça, enfatizou o papel das parcerias na consolidação do Mosaico:
“Desde 2014, construímos esse processo de forma colaborativa, com a participação de instituições como o Museu Goeldi e os próprios povos indígenas, que nos ensinaram outras formas de cuidado com o território”, afirmou.
Importância ecológica e cultural
Petua Awá Guajá, Tatutxa´a Awá Guajá, da Terra Indígena Awá e Liziane Pinheiro, assessora da associação dos Awá Guajá, durante a cerimônia de reconhecimento do Mosaico Gurupi. Foto: Mauro Siqueira/Coletivo 105
O Mosaico Gurupi protege espécies ameaçadas e endêmicas como a ararajuba (Guaruba guarouba) e o caiarara-ka’apor (Cebus kaapori), além de ser território dos povos Guajajara, Ka’apor, Tembé e Awá Guajá — este último com grupos de recente contato e indígenas em isolamento voluntário.
Apesar de sua relevância ecológica e sociocultural, a região segue ameaçada por desmatamento, extração ilegal de madeira e incêndios criminosos. O reconhecimento formal do Mosaico fortalece as estratégias de proteção frente a esses desafios.
Apoio de longo prazo
Lideranças do Mosaico Gurupi em visita à sede do ISPN em Brasília-DF. Foto: Andreza Baré/Acervo ISPN
Há mais de uma década, o ISPN vem contribuindo para a estruturação do Mosaico Gurupi. Atualmente, desenvolve dois projetos diretamente voltados ao mosaico: Paisagens Indígenas — realizado em parceria com o Centro de Trabalho Indigenista (CTI) e o Instituto Nupef, com apoio da Iniciativa Internacional de Clima e Florestas da Noruega (Nicfi); e Gestão e Restauração no Mosaico Gurupi — em parceria com a Coapima e apoio do Programa Copaíbas, do Fundo Brasileiro para a Biodiversidade (Funbio).
A Analista de Projetos Programa Copaíbas/Funbio, Joyce Costa, celebrou o reconhecimento do Mosaico Gurupi como uma conquista histórica.“É muito gratificante ser testemunha desse momento.
O Mosaico Gurupi é o mosaico com o maior número de Terras Indígenas do país, e para o Programa Copaíbas é uma grande satisfação poder contribuir com a gestão ambiental e territorial desses territórios, sempre com base na autonomia e no protagonismo dos povos indígenas”, afirmou.
A Oficial de Programa da Embaixada Real da Noruega, Camila Cavallari, também destacou a relevância do marco.
“O reconhecimento do Mosaico Gurupi valida um trabalho consistente de tantas instituições diferentes. Esse resultado demonstra o impacto concreto de parcerias estratégicas na proteção de biomas críticos e na promoção de uma governança territorial mais eficaz. A Noruega reafirma seu compromisso com a redução do desmatamento, a proteção da biodiversidade e o fortalecimento dos direitos e territórios dos povos indígenas e comunidades locais, que são os verdadeiros guardiões da floresta.”
O coordenador do Programa Povos Indígenas do ISPN, João Guilherme Nunes Cruz, ressaltou que o Mosaico Gurupi simboliza a força da articulação dos povos indígenas para proteger seus territórios:“Ter o apoio da Noruega, por meio da Nicfi, e de parceiros como o Programa Copaíbas e a USAID foi fundamental para fortalecer o Conselho do Mosaico, as ações nos territórios e assim culminar nesse reconhecimento tão esperado. Para o ISPN, é uma honra somar forças com os povos Ka’apor, Awá-Guajá, Guajajara, Tembé e demais instituições do Mosaico Gurupi na construção de soluções concretas para proteger as florestas e enfrentar a crise climática”, reiterou.
Assista abaixo o vídeo sobre o Mosaico Gurupi exibido durante a cerimônia de reconhecimento.