O ISPN participou da segunda parte da 15ª Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas para a Diversidade Biológica, a COP15, realizada em Montreal, no Canadá, entre os dias 7 e 19 de dezembro de 2022. Iniciada em Kunming, China, em outubro de 2021, certamente, esta foi a Conferência da Biodiversidade mais importante das últimas décadas, e resultou na aprovação do novo Kunming-Montreal Global Biodiversity Framework (GBF), ou Marco Global para a Biodiversidade. Trata-se de um acordo histórico para proteger 30% das áreas naturais (terras, oceanos, áreas costeiras e águas interiores) até 2030, em todo o mundo, e restaurar 30% dos ecossistemas já degradados.
Apesar dos esforços e investimentos realizados desde Nagoya, no Japão, em 2010, quando as Metas de Aichi foram pactuadas para salvaguardar a biodiversidade do planeta, os países e o setor privado tiveram pouco sucesso em conter as perdas de biodiversidade e de ecossistemas naturais, que seguem aceleradas e ameaçam o futuro da humanidade.
Somos totalmente dependentes dos benefícios provenientes da Natureza para nos alimentar, estabelecer moradia, gerar energia, viver com saúde e manter o clima da Terra, e, no entanto, com o avanço predatório e inconsequente sobre ela estamos defronte às duas principais crises de nosso tempo, as mudanças climáticas e a perda de biodiversidade.
Os povos indígenas e as comunidades tradicionais são os principais guardiões da Natureza e o reconhecimento das contribuições de seus territórios conservados e manejados para os objetivos de conservação da biodiversidade e regulação do clima global foi nossa principal agenda na COP15. Motivado em promover maior participação da sociedade civil e de povos indígenas e comunidades tradicionais, apoiamos a presença de lideranças e representantes de grupos detentores de conhecimentos tradicionais associados ao uso sustentável da biodiversidade brasileira, em Montreal.
Antonia Cariongo, liderança quilombola maranhense, participou de mesas de discussão relacionadas à economia da sociobiodiversidade. Ela fez uma leitura do impacto de iniciativas empresariais para os territórios, ressaltando a necessidade de construção conjunta de parcerias que promovam benefícios recíprocos e respeitem as comunidades. Antonia teve uma participação destacada ao expor as contradições de uma narrativa da bioeconomia que se esquece das pessoas, usa os recursos dos territórios e, além de uma imagem bonita para o mercado, não agrega, nem valoriza os meios de vida das comunidades. Este foi um dos temas quentes nas negociações, o uso sustentável do conhecimento associado às práticas e meios de vida das populações tradicionais, sobretudo relacionados ao Sequenciamento Genético Digital (Digital Sequence Information, DSI, na sigla em inglês) e a repartição de benefícios de forma justa e equitativa.
O DSI possibilita a transferência e depósito de informações genéticas, desenvolvida pelos povos em processos de seleção e de geração de conhecimentos ancestrais. Países desenvolvidos que concentram esses bancos digitais de livre acesso por empresas e corporações se opunham até o derradeiro momento ao estabelecimento de um Fundo de Acesso e Repartição de Benefícios, que ao final resultou criado, sem as definições de regras para seu funcionamento, delegadas para a próxima COP16, prevista para 2024. O desafio é a implementação de mecanismos para a rastreabilidade da origem dessas informações nos processos de manejo da biodiversidade pelas comunidades tradicionais, como forma de garantir a repartição justa e equitativa de benefícios.
A mobilização de recursos novos, adicionais e complementares para uma ambição de conservação ampliada no Marco Global para a Biodiversidade foi outro tema contencioso que segurou o avanço e definição das negociações. Em dado momento, um conjunto de delegados de países em desenvolvimento, incluindo os países megadiversos, com ideias semelhantes, abandonaram as negociações, devido a diferenças de opinião sobre várias questões relacionadas à mobilização de recursos. A saída foi precipitada por uma discussão sobre a criação de um novo fundo para a biodiversidade.
O entendimento do grupo sinalizava que os países ricos em biodiversidade terão um ônus maior do que outros na implementação de um Marco Global para a Biodiversidade ambicioso. Portanto, sua adoção deveria ser acompanhada pela aprovação de um pacote proporcionalmente robusto sobre mobilização de recursos. Ao final, foi bem recebido o compromisso dos governos de eliminar os subsídios prejudiciais à natureza, reduzindo-os substancial e progressivamente em pelo menos 500 bilhões de dólares americanos por ano.
De igual maneira, o compromisso mais amplo de aumentar substancial e progressivamente o nível de recursos financeiros de todas as fontes, nacionais e internacionais, públicas e privadas, até 2030, mobilizando pelo menos 200 bilhões de dólares por ano. Outra grande conquista é também o compromisso de 20 bilhões de dólares por ano em fluxos financeiros internacionais até 2025 e 30 bilhões até 2030.
A experiência do ISPN com o apoio a projetos ecossociais e na implementação da estratégia de Promoção de Paisagens Produtivas Ecossociais (PPP-ECOS), pode servir para melhorar o papel das ações coletivas, inclusive por povos indígenas e comunidades locais, na gestão comunitária de recursos naturais e cooperação orientadas para a conservação da biodiversidade.
Durante a COP15 participamos de um encontro de parceiros do Global Environment Facility (GEF) que marcou os dez anos da criação de um grupo consultivo de Povos Indígenas, o IPAG, para debater como programas de apoio a comunidades tradicionais podem e devem promover a garantia de direitos humanos a todos os povos.
Também estivemos presentes na cerimônia de 30 anos do Small Grants Programme (SGP), o programa do GEF, por meio do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), implementado no Brasil pelo ISPN. As discussões neste fórum internacional, assim como em vários outros, também apontam para a necessidade dos financiamentos de aproximarem mais das comunidades que conservam e protegem, e a experiência do PPP-ECOS e de outros fundos ligados à Rede Comuá, do qual o ISPN faz parte, também pode servir de exemplo para outros fundos que surgem.
O ISPN parabeniza o esforço e dedicação com que as representações de povos indígenas e comunidades tradicionais de todo o mundo empenharam-se na defesa de seus direitos e reconhecimento das contribuições de seus territórios conservados e manejados para os objetivos de conservação da biodiversidade e regulação do clima global, e se somou a esse esforço durante o encontro, assim como em sua prática diária.
Havia um temor de que a meta de conservação de áreas e restauração de ecossistemas fosse usada para expulsar populações tradicionais de seus territórios. Após duas semanas de negociações muitas vezes tensas do Kunming-Montreal Global Biodiversity Framework (GBF), o Fórum Indígena Internacional sobre Biodiversidade (IIFB) elogiou o texto por sua “linguagem forte sobre o respeito aos direitos dos Povos Indígenas e Comunidades Locais.”
Em comunicado ao plenário de encerramento da reunião, o IIFB celebrou “o reconhecimento oportuno” das contribuições, funções, direitos e responsabilidades dos Povos Indígenas e das comunidades locais para com a Mãe Terra no Kunming-Montreal Global Biodiversity Framework: “Nós falamos e vocês nos ouviram, vamos agora colocar essas palavras em ação”. A urgência da crise ambiental não termina com a assinatura do Marco, afirmou o IIFB, acrescentando que “devemos trabalhar de forma rápida e eficiente para a sua implementação.”
O ISPN compartilha desta visão e coloca-se no lugar de servir aos objetivos de conservação por meio do uso sustentável da biodiversidade, atuando em defesa dos direitos de povos, comunidades e agricultores familiares. Vamos seguir promovendo paisagens produtivas ecossociais e avançando para a implementação, fortalecendo e construindo novas parcerias significativas para garantir o acesso adequado e direto dos povos e comunidades aos recursos necessários para garantir o alcance da ambição estabelecida neste Marco Global para a Biodiversidade. O futuro da humanidade depende disso.