Participantes da formação em recuperação em agroflorestas, restauração e gestão integrada no Mosaico Gurupi. Foto: Andreza Andrade/ISPN

Participantes da formação em recuperação em agroflorestas, restauração e gestão integrada no Mosaico Gurupi. Foto: Andreza Andrade/ISPN

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Indígenas, quilombolas e agricultores familiares participam do primeiro módulo da formação em agroflorestas, restauração e gestão integrada no Mosaico Gurupi

A restauração ambiental dos territórios indígenas, de comunidades tradicionais e assentamentos, pensada a partir da agroecologia e das cosmovisões dos povos, visando a gestão integrada de paisagens, é o foco do curso “Do quintal à paisagem: Formação em agroflorestas, restauração e gestão integrada no Mosaico Gurupi”. A formação está dividida em cinco módulos e tem como objetivo discutir os benefícios em escala de paisagem da restauração ambiental, quando realizada por meio de práticas agroflorestais que consorciam árvores com culturas alimentares e promovem a segurança alimentar, a geração de renda e o bem viver comunitário. A realização da formação é do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), em parceria com o Centro de Trabalho Indigenista (CTI), por meio do projeto Paisagens Indígenas, com apoio da Agência Norueguesa de Cooperação para o Desenvolvimento (Norad), via a Iniciativa Internacional Climática e Florestal da Noruega (Nicfi).

A fim de iniciar esta jornada formativa, o primeiro módulo do curso  foi realizado em Santa Inês (MA), entre os dias 28 de novembro a 3 de dezembro de 2022, com cerca de 30 participantes, dentre eles representantes das terras indígenas do Mosaico Gurupi, da Reserva Biológica do Gurupi, do Movimento Sem Terra (MST-MA) e do Quilombo do Onça (MA). O foco desta etapa do curso foi a importância dos quintais agroflorestais como início desses processos, ressaltando ainda as árvores nativas como principais protagonistas das iniciativas de recuperação ambiental. Saiba mais a seguir.

Tudo começa no quintal

“O quintal primordial” foi o tema de destaque no primeiro módulo com reflexões sobre como este espaço é o ponto de partida para se pensar a recuperação ambiental em escalas maiores. “Observamos muitas vezes que tanto a academia e até mesmo as políticas públicas não dão muito valor aos quintais, mas hoje sabemos que há muito o que descobrir. O agricultor se torna um experimentador, ele já está fazendo uma pesquisa no seu quintal antes de expandir o plantio para espaços maiores, como os roçados, por exemplo”, afirmou Robert Miller, assessor técnico do ISPN e um dos coordenadores do curso. Os quintais, portanto, são “laboratórios” onde agricultores testam, armazenam e multiplicam novas plantas, sendo componentes dos sistemas agrícolas de cada cultura ou povo. Para Miller, as experiências nos quintais também ajudam na manutenção das redes de trocas de plantas e de saberes que contribuem para a vida social comunitária.

Momento de discussão entre os/as cursistas. Foto: Andreza Andrade/ISPN

Duas experiências indígenas apresentadas estimularam as discussões entre os/as cursistas sobre o uso de espaços cultivados, onde há seleção de determinadas espécies destinadas a usos específicos, sejam associadas aos rituais, à geração de renda, à infraestrutura comunitária, dentre outros. A primeira delas foi o cultivo do guaraná (Paullinia cupana) ou sapó como é conhecido pelos Sateré-Mawé, do Amazonas, que por meio dos seus conhecimentos tradicionais, mantém guaranazais centenários consorciados com plantios de fruteiras e espécies madeireiras. A segunda experiência tratou do pau-rainha (Centrolobium paraensis), árvore cultivada por diversos povos indígenas do Lavrado (savana) roraimense, cujo uso principal é na construção de casas. “O que plantamos nos nossos quintais é compartilhado também com nossos vizinhos, pois assim ensinaram os nossos avós, contou Valdeir Tembé, na ocasião da partilha das experiências pessoais. “Além disso, ele (o quintal) faz uma sombra tão bonita para nós, seja de manhã, seja pela tarde, ficamos debaixo das árvores, onde é tudo mais fresco, por isso cuidamos dessas árvores, porque elas também cuidam da gente”, completou. Marina Cíntia Guajajara destacou o aspecto da manutenção da saúde comunitária e mencionou os quintais como importantes atores nesses processos. “Minha avó e minha mãe se dedicam a plantar ervas medicinais no nosso quintal e distribuem essas mudas por toda a comunidade. Quando veio a pandemia essas plantas nos ajudaram a tratar os sintomas da Covid, como por exemplo, o nosso gengibre nativo”, relatou

Na visão de Maria Sales, do assentamento Sigra/Lagoa Grande (MA), os quintais podem se configurar numa importante alternativa de geração de renda para as famílias de agricultores, onde ao mesmo tempo, se trabalha o reflorestamento e a consciência ambiental das futuras gerações. “Priorizamos nos nossos quintais o plantio de frutíferas, mas também temos hortas, plantas medicinais e pequenas criações, pois tudo isso ajuda na renda familiar além do próprio sustento alimentar. Além disso, procuramos trabalhar nos assentamentos os quintais enquanto pontos de partida para o reflorestamento de áreas maiores, e é muito importante envolver as crianças nesses processos para que elas cresçam tendo essa consciência da preservação ambiental e da importância da diversidade”, afirmou.

As árvores como protagonistas

O módulo também debateu as árvores enquanto protagonistas nos processos de restauração. Além das próprias funções biológicas, as árvores são partes importantes das cosmologias indígenas, onde são responsáveis pela geração da vida na floresta, nos rios e na natureza como um todo. Para a discussão dessa temática, foi apresentada a experiência do povo Tikuna do Amazonas, cujo “Livro das Árvores”, conta o valor e o significado de várias espécies nativas, tanto para sobrevivência física quanto cultural. “Muito importante ouvirmos as histórias dos outros parentes indígenas para pensarmos as nossas próprias, para nós, as árvores são patrimônios vivos que trazem consigo a história da criação da nossa humanidade, seja ela humana e não humana, pois os animais, os rios, a natureza também é uma humanidade, por isso prezamos tanto por nossas árvores”, enfatizou Iracadju Ka’apor. 

Mas quais árvores seriam mais adequadas para iniciativas de restauração? Um dos pontos comentados por todos/as foi o uso de espécies tanto por parte das pessoas quanto por parte dos animais da floresta. “Sem árvore não tem fruta e se não tem fruta, não tem animais e sem animais não tem caça, o que é muito importante para nossa sobrevivência”, afirmou Valdir Krahô. O retorno da fauna também significa obter elementos fundamentais para práticas de diversos rituais e festejos, como a Festa do Moqueado, do povo Guajajara, que depende da caça para acontecer. Além de serem fontes de proteínas, os animais também ajudam na dispersão das sementes e contribuem na aceleração dos processos de restauração.

Conhecendo experiencias de recuperação da TI Rio Pindaré

À esquerda, na sua base, Guardiões da Floresta, brigadistas e grupo de mulheres recepcionam o grupo de cursistas para a prática de campo. À direita, visita ao Lago da Bolívia. Fotos: Andreza Andrade/ISPN

Os/as cursistas tiveram um dia de campo na Terra Indígena Rio Pindaré (MA), onde conheceram de perto diversas experiências de recuperação ambiental, gestão e proteção territorial indígena. Foram recebidos pelos Guardiões da Floresta, brigadistas e grupo de mulheres Wiriri Kuzá Wá. Esses três coletivos compõem a “tríade” da gestão territorial da TI Rio Pindaré, cujas ações são articuladas pela Associação Indígena Comunitária Mainumy. 

De voadeira os/as visitantes se deslocaram ao Lago da Bolívia, um patrimônio da TI, que é palco de constante tensão entre indígenas e invasores não indígenas que adentram o território para caçar e pescar ilegalmente. A partir da base de apoio dos Guardiões, caminharam pela mata para conhecer uma das nascentes que está sendo reflorestada pelos indígenas e que há mais de cinco anos voltou a ser uma fonte perene. O local é considerado um exemplo de resiliência e de retorno da biodiversidade para o território. “Essa caminhada na floresta está sendo muito emocionante para mim, pois onde me criei era assim, mas agora é tudo pastagem. Estar aqui com os parentes indígenas e conhecer esse trabalho de recuperação que eles fazem mostra a força desse povo, as nossas lutas são muito parecidas”, relatou Sr. João da Cruz, do Quilombo do Onça.

À esquerda, plantio de mudas de açaí ao longo da nascente, uma aula prática a partir do diálogo de saberes entre os cursistas, anfitriões/ãs e instrutores/as do curso. À direita a nascente recuperada com curso d’água perene. Fotos: Andreza Andrade/ISPN

Na aldeia Piçarra Preta conheceram ainda a experiência de reflorestamento da família de Samanta Guajajara, que associa o afeto pela floresta recuperada à memória dos seus ancestrais. “Quero sentir o que minha avó sentiu, quero que esta área seja como ela descrevia, aqui sentimos a presença dela e dos espíritos da floresta. Vamos continuar cuidando disso tudo que ela deixou para nós”, destacou.

Samanta Guajajara e seu pai Fernando, apresentam a área reflorestada. Fotos: Andreza Andrade/ISPN

Os/as cursistas também conheceram o quintal do Sr. Pita Guajajara que incorpora uma variedade de espécies nativas da floresta. Os Guardiões da Floresta também relataram como se organizam e realizam os seus trabalhos de proteção territorial. Os brigadistas indígenas também falaram do seu importante trabalho no controle dos incêndios criminosos que eram recorrentes na TI. O grupo de mulheres indígenas contou como fazem o plantio para o reflorestamento de áreas degradadas e a conscientização do entorno da TI. E no final da visita, os anfitriões e anfitriãs encerram o dia com um canto Guajajara.

“Foi muito bom receber esse grupo de cursistas, fazer essa imersão no nosso trabalho, ajuda na visibilidade e fortalece nossas ações”, afirmou Arlety Guajajara, presidente da Associação Mainumy.

Feira de sementes e mudas e as práticas intermódulos

Como última atividade de valorização do diálogo intercultural e da troca de saberes, o módulo foi encerrado com uma feira de troca de sementes e mudas entre os/as cursistas. Sementes de diversos cultivos da roça, como variedades crioulas de feijão, arroz, fava e guandu e de árvores nativas como mogno, aroeira, bacuri e araribá, entre outras, foram compartilhadas entre todos/as. Cada cursista também compôs um “kit” de uma variedade de mudas de fruteiras e madeireiras adquiridas num viveiro da região. A feira se conecta com as atividades que serão realizadas pelos/as cursistas no período de intervalo até o próximo módulo, com o plantio e observação do desempenho tanto das sementes quanto das mudas nos seus quintais e roças.

Feira de trocas de sementes e mudas Foto: Andreza Andrade/ISPN

Dentre outras atividades intermódulos, os/as cursistas deverão ainda fazer um estudo de um quintal representativo, com levantamento das árvores e plantas encontradas e observações sobre seu uso, manejo e valor cultural. Para tanto, receberam como parte do material didático o  “Guia Multilíngue das árvores do Mosaico Gurupi”, que tem como objetivo auxiliar na identificação das espécies prioritárias para plantio, seja pela importância para utilização humana (alimento, remédio, artesanato, construção e etc), seja como alimento da fauna silvestre. No próximo módulo, todos/as farão apresentações dos resultados dos seus estudos de um quintal e sobre as árvores.

Autoria: Andreza Baré / Assessoria de Comunicação ISPN

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