Em documento assinado por todos os participantes, foi solicitada a imediata oficialização do mosaico pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) e pelo Ministério dos Povos Indígenas (MPI)
A última grande mobilização em defesa das florestas da Amazônia Oriental ocorreu em 2014, quando uma aliança histórica entre os povos indígenas do norte do Maranhão foi consolidada na Serra do Bicho, território sagrado do povo Tenetehara, localizado na Terra Indígena Caru (MA). Naquele encontro emblemático, uma das decisões mais marcantes foi a integração dos territórios indígenas ao Mosaico Gurupi. Nove anos depois, esses territórios voltaram a se reunir para reafirmar o compromisso como guardiões da vida e da biodiversidade nessa região essencial da Amazônia.
“Este encontro também entra para a história”, declarou Rosilene Guajajara, ao falar sobre o evento Trilhando Ações Estratégicas de Proteção e Gestão Territorial do Mosaico Gurupi, realizado de 19 a 21 de novembro de 2024, na Aldeia Maçaranduba, na Terra Indígena Caru. “Estamos celebrando a nossa força na proteção da vida em nossos territórios”, enfatizou Rosilene, que atua como Secretária Adjunta dos Direitos dos Povos Indígenas do Maranhão.
O evento reuniu cerca de 250 participantes, entre representantes de nove povos indígenas — Guajajara, Awá Guajá, Ka’apor, Tembé, Krahô, Krikati, Kanela, Apinajé e Akroá Gamela —, instituições governamentais, instituições de ensino e pesquisa e organizações da sociedade civil. O objetivo central foi promover o compartilhamento de experiências e discutir estratégias para enfrentar desafios relacionados à proteção territorial, como o controle de invasões, o desmatamento e a prevenção e combate a incêndios florestais.

A iniciativa também buscou fortalecer uma rede de colaboração entre os povos indígenas, incentivando ações conjuntas para manter a floresta em pé e garantir um futuro sustentável para as próximas gerações no Mosaico Gurupi. Entre os participantes estavam Guardiões e Guerreiras da Floresta, brigadistas, associações de base e outros coletivos indígenas que atuam diretamente na proteção e gestão territorial.
O encontro foi promovido pelo Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), Associação Wirazu e pela Coordenação das Organizações e Articulações dos Povos Indígenas do Maranhão (Coapima), no âmbito do projeto Aliança dos Povos Indígenas pelas Florestas da Amazônia Oriental, apoiado pela Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID). Essa iniciativa é conduzida em parceria com o Centro de Trabalho Indigenista (CTI), o ISPN, a Coapima, a Articulação das Mulheres Indígenas do Maranhão (Amima) e a Associação Wyty Catë das Comunidades Timbira do Maranhão e Norte do Tocantins.
O encontro também contou com o apoio da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), do Programa Copaíbas/ Fundo Nacional para a Biodiversidade (Funbio), do Floresta+/PNUD, da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e do Projeto Paisagens Indígenas, apoiado pela Iniciativa Internacional da Noruega para o Clima e Florestas (Nicfi).
A urgência do reconhecimento
Localizado entre o Maranhão e o leste do Pará, o Mosaico Gurupi é uma das áreas mais importantes para a conservação da Amazônia Oriental. Abrange cerca de 46 mil km² e é composto pelas terras indígenas Araribóia, Caru, Rio Pindaré, Awá, Alto Turiaçu, Alto Rio Guamá e pela Reserva Biológica do Gurupi. É considerado um patrimônio socioambiental com rica biodiversidade, onde espécies endêmicas de fauna e flora coexistem com os povos Guajajara, Awá Guajá, Ka’apor e Tembé.

Apesar de sua importância, o Mosaico Gurupi enfrenta ameaças constantes. A extração ilegal de madeira, a caça e pesca predatórias e o desmatamento para pecuária extensiva comprometem a integridade do território. Esses desafios são agravados por incêndios florestais, intensificados pelas mudanças climáticas e períodos de seca prolongada, que ameaçam tanto o ecossistema quanto a sobrevivência das comunidades indígenas.
“Protegemos esses territórios porque aqui é a nossa casa. Observamos os impactos das mudanças climáticas: seca, fogo e, como povos indígenas, defendemos as últimas florestas do nosso estado”, destaca o cacique Antônio Wilson, da aldeia Maçaranduba, que também ocupa o cargo de secretário executivo do Conselho Gestor do Mosaico Gurupi. Ele divide a liderança dessa instância de governança com Eloisa Mendonça, analista ambiental da Unidade Gestora da Reserva Biológica do Gurupi do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (Rebio Gurupi/ICMBio).
Desde 2018, o Mosaico Gurupi conta com uma estrutura de governança construída em oficinas de sensibilização promovidas pela Rebio Gurupi. Essa estrutura é composta por uma Secretaria Executiva, Grupos de Trabalho e um Conselho Gestor, com representações de todas as áreas protegidas que integram o mosaico, além de instituições governamentais, de ensino, pesquisa e da sociedade civil. Contudo, o mosaico ainda não foi formalmente reconhecido pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA).

Para João Guilherme Nunes Cruz, coordenador do Programa Povos Indígenas do ISPN, a formalização do Mosaico Gurupi é essencial para fortalecer as estratégias de proteção territorial. “A formalização garantirá mais apoio institucional às ações articuladas de gestão ambiental e fortalecerá a interface entre as terras indígenas e a Reserva Biológica do Gurupi, as únicas áreas protegidas dessa parte da Amazônia”, explica.
O encontro também foi uma oportunidade para reforçar a demanda pela formalização do Mosaico Gurupi. Durante o evento, foi elaborado um documento assinado por todos os presentes, que reivindica o reconhecimento oficial do mosaico pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) e pelo Ministério dos Povos Indígenas (MPI).
“A formalização é fundamental para fortalecer nossa luta, proteger a Amazônia e garantir o equilíbrio climático, essencial para nossas vidas e o planeta”, destaca o texto do documento, que será entregue em reuniões bilaterais com representantes governamentais, em Brasília (DF).
Os desafios para a proteção territorial do Mosaico Gurupi

Guardiões, guerreiras, brigadistas e lideranças se reuniram para debater os desafios enfrentados na proteção dos territórios indígenas do Mosaico Gurupi. Esses esforços, muitas vezes realizados em parceria com órgãos como a Funai, Polícia Federal, Ibama e Polícia Ambiental, ainda dependem do trabalho voluntário, sem remuneração. Os grupos reivindicam maior reconhecimento e apoio por meio de políticas públicas que incluam suporte financeiro e melhores condições para o desempenho dessas atividades, marcadas por elevados riscos, especialmente no enfrentamento de ilícitos dentro dos territórios.
As discussões também incluíram o compartilhamento de estratégias locais de defesa territorial. O povo Ka’apor, por exemplo, implementou a ocupação dos limites de seu território e fundação de novas aldeias como forma de conter invasões.
“Observamos uma redução drástica nas invasões, apesar de estarmos cercados por povoados não indígenas”, relatou Akadjurichan Ka’apor, líder dos Guardiões.
As mulheres também tiveram destaque nas ações de proteção. As Guerreiras da Floresta, da Terra Indígena Caru, promovem campanhas de conscientização junto a comunidades vizinhas, enquanto na Terra Indígena Rio Pindaré atuam na recuperação de nascentes, em parceria com brigadas voluntárias indígenas.
Fortalecendo parcerias

O grupo de instituições parceiras do Mosaico Gurupi reuniu-se para discutir possibilidades de ações conjuntas em prol da proteção territorial e do fortalecimento das comunidades indígenas. Participaram representantes da Coordenação Regional da Funai no Maranhão (CR MA/Funai), a Frente Etnoambiental Awá/Funai, o Projeto Pages, executado pela Secretaria de Estado da Agricultura Familiar do Maranhão, o Corpo de Bombeiros, ICMBio, a COIAB, o ISPN, o Instituto Makarapy, o Programa Copaíbas/Funbio, a Polícia Federal, o ICMBio, a Secretaria Adjunta dos Povos Indígenas vinculada à Secretaria de Estado dos Direitos Humanos e Participação Popular (SEDIHPOP), a Coapima e a Universidade Federal do Pará (UFPA).
Dois temas emergiram como prioritários nas discussões: gado e fogo. O primeiro diz respeito às pastagens clandestinas, em que fazendeiros não indígenas invadem terras indígenas para o pastoreio de gado, causando degradação ambiental significativa. Já o segundo tema aborda os incêndios florestais, que se tornaram mais frequentes e difíceis de controlar, agravados pelas mudanças climáticas e pela falta de estrutura governamental para prevenção e combate. A ausência de recursos e equipamentos adequados foi apontada como um dos principais entraves à eficácia das ações de controle, elevando os riscos para os territórios e comunidades.
Como resultado das discussões, os representantes comprometeram-se a buscar soluções conjuntas para enfrentar esses desafios prioritários. Além disso, reafirmaram o compromisso de apoiar as demandas indígenas e fortalecer as ações integradas de proteção territorial do mosaico.
Construindo um plano de proteção territorial para o Mosaico Gurupi

Os debates do encontro resultaram em demandas para a construção de um plano de proteção territorial do Mosaico Gurupi. Entre os pontos destacados estão:
- Criação de corredores ecológicos para conectar as terras indígenas e promover a dispersão de espécies, aumento da cobertura vegetal e movimentação da fauna;
- Valorização do trabalho de guardiões, guerreiras e brigadistas, garantindo reconhecimento profissional, remuneração justa e suporte logístico a fim de garantir ações permanentes de vigilância, monitoramento, manejo e combate a incêndios florestais;
- Restauração ambiental, incluindo reflorestamento de áreas degradadas, recuperação de nascentes e conservação de sementes tradicionais;
- Proteção de lideranças indígenas ameaçadas e inclusão de povos indígenas em espaços de decisão política;
Além dos pontos destacados, foi ressaltada a importância da juventude indígena a assumir um papel mais ativo, tanto no monitoramento dos territórios quanto na articulação política. Para isso, é necessário promover intercâmbio de saberes entre gerações e levar a pauta da proteção territorial para as universidades.
Participação dos Povos Timbira

Os povos Timbira do Cerrado Maranhense e do norte do Tocantins participaram do evento para conhecer a estratégia de gestão baseada na formação de mosaicos. Essa troca de experiências destacou a importância dos mosaicos como modelo de conservação e gestão compartilhada.
“Eles estão tendo a oportunidade de conhecer essa estratégia de proteção e gestão territorial, que consiste na formação de mosaicos de áreas contínuas. Essa abordagem é crucial para a conservação da biodiversidade, a gestão compartilhada de territórios e a criação de corredores ecológicos”, destacou Renan Chaves, assessor técnico do CTI.
“Foi muito interessante conhecer experiências de outras mulheres e pensar, junto com meu povo, em fortalecer o trabalho das nossas Guerreiras Krahô”, afirmou Cruwakwyj Krahô, ressaltando o potencial de aprendizado e troca proporcionado pelo evento.
Lançamento de publicação “Quintais Agroflorestais do Mosaico Gurupi”

Durante o encontro, foi lançado o livro “Quintais Agroflorestais do Mosaico Gurupi – Sementes para a Restauração Biocultural de Paisagens”. A obra é resultado do curso “Do Quintal à Paisagem: Formação em Agroflorestas, Restauração e Gestão Integrada”, promovido pelo ISPN, no âmbito do projeto Paisagens Indígenas, com o apoio da Iniciativa Internacional da Noruega para o Clima e Florestas (Nicfi).
A publicação reúne um levantamento detalhado de espécies frutíferas e madeireiras realizado pelos alunos do curso, destacando o potencial dessas plantas na restauração de áreas degradadas em territórios indígenas.
“O ponto de partida para pensar a restauração de paisagens é o quintal, é lá onde tudo começa”, explicou o assessor técnico do ISPN Robert Miller.

Baseado no conceito de restauração biocultural — que alia a recuperação ambiental às práticas e concepções culturais locais — o livro apresenta o mapeamento dos quintais agroflorestais dos alunos. Esse trabalho inclui listas de espécies cultivadas ou que crescem espontaneamente nos terreiros, mostrando como essas plantas, fundamentais para a cultura e o cotidiano das comunidades, são indispensáveis ao planejamento da restauração das paisagens, integrando biodiversidade e cultura.
O futuro da Amazônia Oriental
Para líderes como o cacique Antônio Wilson, a proteção do Mosaico Gurupi é essencial não apenas para os povos indígenas, mas também para o equilíbrio climático global. A formalização do mosaico, a valorização do trabalho dos guardiões, guerreiras e brigadistas, aliada às ações de fortalecimento territorial, consolida a luta desses povos pela conservação da floresta e pela garantia de um futuro sustentável para as próximas gerações.
Saiba mais sobre o evento no vídeo documentário abaixo, produzido por Fernando Ralfer (CTI) em colaboração com Andreza Baré (ISPN):