Fora garimpo (Foto: Victor Moriyama/Instituto Socioambiental)

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Fatos e retrocessos: A proposta de regularizar a grilagem de terras públicas

Por Guilherme Eidt, Assessor Técnico do ISPN

A narrativa do governo federal e de setores do agronegócio é que a falta de regularização fundiária é uma das principais causas para a perda de florestas na região amazônica. E, na lógica daqueles que exigem mudanças na lei fundiária, para identificar e responsabilizar os infratores ambientais seria preciso emitir um título de propriedade e premiar aqueles que desmatam ilegalmente as florestas públicas.

Os dados apontam que, entre 2013 e 2020, período em que o desmatamento voltou a subir na Amazônia, 40% da perda de florestas ocorreu em área com indefinição fundiária, que representam 28,5% do território sem informações sobre a destinação.[1] Mas, não é por falta de legislação que se deixou de combater o desmatamento e a grilagem de terras públicas no Brasil.

Do total de áreas desmatadas em 2019 no país 83% dos alertas (63% da área) estão no bioma Amazônia, e o bioma Cerrado aparece com 13% dos alertas (33,5% da área). Desse total, 11,1% dos alertas (12% em área) sobrepõem integral ou parcialmente com Unidades de Conservação (UC); 5,9% (3,6% em área) com Terras Indígenas (TI); e 65% (77% em área) com imóveis rurais inseridos no Cadastro Ambiental Rural.[2]

Mais precisamente, apenas nos últimos cinco anos, ao menos duas medidas provisórias, uma lei, três decretos e três instruções normativas do Incra, dentre outros atos normativos como resoluções e portarias, foram editadas para alterar a Lei nº 11.952/2009 e seus regulamentos, que cuidam da regularização de posses em terras públicas federais.[3]

Há tempo que o Incra dispõe de instrumentos normativos e tecnológicos para avançar com a destinação de terras públicas federais. Hoje existe procedimento simplificado para titulação, por meio de análise documental, declaração do ocupante e verificação por sensoriamento remoto, sem vistoria no local, para áreas com até 4 módulos fiscais.

No entanto, nos últimos 11 anos apenas 24 mil títulos foram concedidos, e cerca de 108 mil imóveis encontram-se em análise pelo Incra. O déficit de regularização fundiária é 70% para pedidos com áreas de até 1 módulo fiscal, 95% dos pedidos são para áreas até 4 módulos fiscais.[4] E isto não pode ser justificativa para alimentar a indústria da grilagem de terras públicas com uma nova alteração da legislação, porque já existem os instrumentos para atender a esse público da agricultura familiar.

Somente 4% dos imóveis hoje em análise pelo Incra seriam atendidos por uma eventual mudança na lei fundiária, todos com áreas entre 4 e 15 módulos fiscais. Apenas 221 imóveis acima de 15 módulos fiscais pleiteiam regularização.[4] Esse conjunto representa 38% da área total em análise pelo Incra, são 3,3 milhões de hectares numa verdadeira reserva de mercado na expectativa da alteração da lei.

É a indústria da grilagem de terras públicas, pedindo passagem no parlamento brasileiro. Além de alterar o marco temporal para se apossar de terras desmatadas até dezembro de 2014, pela proposta do PL 510/2021, do Sen. Irajá, pretende-se que pessoas que já tenham propriedades rurais, ou tenham vendido as áreas das quais foram beneficiadas por programas de reforma agrária ou regularização, possam ter até 2.500 hectares reconhecidos e titulados pelo Estado. Isso, ainda que estejam enquadrados por desmatamento ilegal ou outras condutas lesivas ao meio ambiente.[3]

Do total de áreas da Amazônia sem definição fundiária, equivalente a 143 milhões de hectares, 43% (ou 61 milhões de hectares) possuem prioridade para conservação, de acordo com o próprio Ministério do Meio Ambiente.[5] Essas terras públicas devem receber destinação indicadas pela legislação vigente e o próprio texto constitucional para demandas de reconhecimento de Terras Indígenas, Territórios Quilombolas ou ocupados por comunidades tradicionais, áreas para conservação e acesso à terra para a agricultura familiar, por meio da reforma agrária. A privatização de terras públicas só deve acontecer na ausência dessas prioridades legais na área.

É de amplo conhecimento que a desorganização das bases de dados fundiários e a baixa adoção de tecnologia dificultam a organização de um cadastro de terras único ou compartilhado. Muitas leis estaduais ainda incentivam a invasão de terras públicas. Os estados não coíbem a titulação de áreas com desmatamentos ilegais, e a maioria não exige compromisso de restauração do passivo feito antes da titulação. A população brasileira subsidia a privatização de terras na Amazônia sem garantias de uso sustentável no imóvel, e falta transparência e controle social sobre a privatização do patrimônio público fundiário.[1]

Enfrentar tais desafios exige mais do que títulos de propriedade àqueles que desmatam ilegalmente as florestas públicas. Exige concertação entre União, estados e municípios, e decisão em cumprir a legislação e a Constituição Federal. Flexibilizar as regras para a regularização da grilagem, beneficiando médios e grandes posseiros e anistiando crimes como a grilagem e o desmatamento ilegal, certamente, não é a solução.

[1] Brito, Brenda. Dez fatos essenciais sobre regularização fundiária na Amazônia / Brenda Brito; Jeferson Almeida; Pedro Gomes; Rodney Salomão. Belém, PA: Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia, 2021.

[2] Azevedo, Tasso et al. Relatório Anual de Desmatamento 2019 – São Paulo, SP – MapBiomas, 2020.

[3] Chiavari, Joana e Cristina L. Lopes. Nova Investida Contra a Legislação Fundiária. Projeto de Lei nº 510/2021 Retoma os Retrocessos da MP nº 910/2019 e Beneficia Invasores de Terras Públicas. Rio de Janeiro: Climate Policy Initiative, 2021.

[4] Rajão, Raoni. PL 2633/2020 e PL 510/2021: regularização fundiária para que e para quem? UFMG. Apresentação CEFOR/Câmara dos Deputados. 18.mar.2021.

[5] Brasil. Portaria do MMA n. 463/2018.

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