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Direito quilombola também é questão de terra: “para eu estar aqui, muita gente lutou antes de mim”

Railane Ribeiro da Silva, presidente da Associação dos Artesãos e Extrativismo Povoado Mumbuca, no Jalapão, Tocantins, tem 26 anos e é a mais jovem liderança da história de sua comunidade. “Muita gente lutou antes de mim para eu estar aqui”, destaca a jovem em conversa com o ISPN. 

A região em que vive, repleta de atrativos ecológicos e belezas naturais, é um local em disputa. Apesar de ser um “território preto”, o turismo convencional com seus grandes empreendimentos já chegou por ali, além da soja e de outros monocultivos. 

O cenário é, afinal, comum quando falamos em comunidades quilombolas, tradicionais ou de agricultura familiar no Brasil. É em meio a ele que Railane se constitui como uma referência para a juventude de seu povo. Ela afirma que resiste e que busca incluir os e as mais jovens nas tomadas de decisão.

A Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), lembra em seu documento de criação que “a luta do movimento quilombola caracteriza-se pela defesa do seu território, conseqüentemente, de sua sobrevivência enquanto grupo específico ameaçado pelo avanço da especulação imobiliária, dos grandes empreendimentos, que afetam e alteram diretamente a existência desses grupos”. 

Constituir territórios étnicos no país, além de ser uma concretização de uma política fundiária, é portanto um elemento de resgate da cultura afro-brasileira. Os quilombos trazem em sua base a ancestralidade negra e a histórica resistência à opressão racista. 

Benedito Alves é líder do quilombo de Ivaporunduva, no Vale do Ribeira, São Paulo, trabalha com o etnoturismo ao lado de sua companheira Elvira, de sua família e de toda sua comunidade. 

Para ele, esse tipo de turismo, que faz um resgate histórico da luta quilombola, é uma forma de envolver a população de fora na cultura local. Ele ainda explica que as práticas comunitárias envolvem a agricultura familiar e o cuidado com o meio ambiente. 

“Nosso povo está aqui há 400 anos e nunca degradou o território”, destaca seu Ditão, como é conhecido.

Se no passado os quilombos permaneceram cercados de “invisibilidade” como forma de proteção contra ameaças externas decorrente da segregação social e da escravização, hoje as comunidades querem sair do isolamento por meio do reconhecimento de direitos territoriais e valores culturais, como explica a Conaq. 

É o caso do quilombo São Félix, na região do Parque Nacional Grande Sertão Veredas, em Minas Gerais. Aos 62 anos, José Fino, que é líder no quilombo, explica que sua comunidade começa a trabalhar o Turismo de Base Comunitária como forma de resistência. 

A prática, que busca conciliar o respeito aos princípios comunitários e ao meio-ambiente, se configura atualmente como uma maneira de fazer frente à pressão sobre o território. “Nós, quilombolas, temos que resistir e não desistir”, defende Zé Fino, como é chamado. 

No território de Railane, não apenas o turismo, mas também a comercialização de artesanatos fortaleceram sua comunidade. Foi a partir do manejo da haste de uma pequena flor branca da família das sempre-vivas, popularmente conhecida como capim dourado, que sua comunidade recuperou a auto-estima e reconheceu a importância de seu trabalho. 

Questão quilombola também é questão de terra 

De acordo com a Base de Informações Geográficas e Estatísticas sobre os Indígenas e Quilombolas, plataforma do IBGE que organiza dados sobre o tema, em 2019 existiam 5.972 localidades quilombolas. 

Uma matéria da Agência Brasil, no entanto, aponta que em 2018 menos de 7% das terras reconhecidas como pertencentes a povos remanescentes de quilombos estão regularizadas no país. 

Esse cenário sinaliza grave oposição ao reconhecimento desses territórios, que têm sofrido impedimentos legais e administrativos do próprio governo federal nos últimos anos. 

O problema é que, sem a certificação, as comunidades quilombolas perdem o acesso à políticas públicas básicas e se tornam alvos de conflitos pela terra com grileiros e latifundiários.

Esse cenário se comprova em dados já que segundo levantamento da Conaq e da Comissão Pastoral da Terra, em 2017 o número de assassinatos de quilombolas foi o maior em dez anos e o homicídio contra essa população aumentou 350% em comparação a 2016. 

É neste contexto que a questão quilombola ganha peso no cenário nacional. O reconhecimento legal de direitos, no que diz respeito ao título de terras, gerou uma série de demandas por proposições legislativas em âmbito federal e estadual. 

E para atender essas demandas, surgem organizações como a CONAQ, com o objetivo de lutar pela garantia de uso coletivo do território, pela implantação de projetos de desenvolvimento sustentável e pela implementação de políticas públicas nas comunidades de quilombo. 

Consciência negra 

Além disso, a luta do movimento negro se confunde com o avanço do direito quilombola na legislação brasileira. Não por acaso, o dia da consciência negra também é um dia em homenagem a Zumbi dos Palmares, o último dos líderes do Quilombo dos Palmares, o maior dos quilombos do período colonial. 

O movimento negro foi um importante ator no processo de redemocratização do país após a ditadura militar, sobretudo no que diz respeito aos direitos étnicos-quilombolas, tendo feito as principais articulações neste campo. 

A garantia legal na Constituição Federal de 1988 referente aos direitos quilombolas foi um cenário fértil para a produção de novas lutas étnicas por reconhecimento e se materializou no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. 

Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras, é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes títulos respectivos.

Como resultado dessa luta, em 1995, foi concedido o primeiro título de posse de terra a uma comunidade quilombola, no Brasil, a de Boa Vista, no Rio Trombetas. Em 1996, foi a vez das comunidades negras do Pacoval e Água Fria receberem os títulos. 

Há ainda muito que se avançar no que diz respeito aos direitos quilombolas. No dia da Consciência Negra e sempre, resgatar este debate é uma forma lembrar que é preciso manter a terra livre, já que ela representa o direito de ser livre e o direito de posse do espaço vivido. 

Texto por Camila Araujo, assessora de Comunicação do ISPN. Foto: Méle Dornelas/Acervo ISPN.

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