A perda de volume de água estimada corresponde à vazão de oito rios Nilo, no Egito. A principal causa é a mudança no uso do solo pela agropecuária, segundo estudo publicado em revista internacional.
No dia 22 de março, Dia Mundial da Água instituído pelas Nações Unidas em 1992, o Cerrado soltará um grito de socorro. Segundo estudo realizado com o apoio do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN) e publicado na revista científica internacional Sustainability, o impacto do desmatamento para uso da terra em monocultivo e pasto pode gerar uma perda de água nas bacias hidrográficas do bioma em 23.653 m³/s nos próximos 28 anos.
Todo esse volume de água corresponde à vazão de oito rios Nilo, no Egito. Essa quantidade de metros cúbicos por segundo é o equivalente a uma perda de 34% da vazão de água do Cerrado nos próximos 28 anos, em comparação com a quantidade de água observada em 1985.
O estudo estava para revisão científica desde o final do ano passado e foi publicado em fevereiro com o título Um futuro preocupante para os fluxos dos rios no Cerrado brasileiro provocado pelo uso da terra e mudanças climáticas, de autoria do doutor em Ciências Florestais e diretor do Instituto Cerrados, Yuri Salmona, em parceria com outros estudiosos.
Acesse em inglês aqui. A versão em português estará disponível, em breve, na biblioteca da Universidade de Brasília (UnB) on-line.
Segundo Salmona, que realizou a pesquisa no âmbito do doutorado em Ciências Florestais na UnB, as principais causas da perda de água prevista são as mudanças do uso do solo, mais do que as mudanças climáticas.
Foram analisadas 81 bacias hidrográficas no Cerrado, no período entre 1985 e 2022. Destas, 88% já apresentam diminuição da vazão devido às intensas mudanças na prática agropecuária dos últimos anos. O estudo aponta que as mudanças climáticas são responsáveis por cerca de 44% da redução da vazão, já as mudanças do uso do solo são responsáveis por 56%. Monocultura e pecuária utilizam muita água para irrigação de grãos como soja, milho e algodão (commodities), além da pecuária, desequilibrando assim o ciclo hidrológico.
“O desmatamento para agricultura em larga escala, que demanda intensa irrigação, altera o ciclo hidrológico de forma que diminua a vazão dos rios. Os principais problemas derivados das mudanças do clima são a evapotranspiração potencial e a chuva. Estamos tendo chuvas mais concentradas, em períodos mais curtos, e os períodos de seca estão sendo mais longos”, explica.
“Como as chuvas estão concentradas em períodos menores, infiltra menos água no aquífero subterrâneo e a disponibilidade hídrica para o período seco diminui. Então, a chuva não está diminuindo na maior parte das áreas analisadas, ela está tendo maior dificuldade de infiltrar no aquífero. Do ponto de vista climático, é muito grave o aumento da radiação solar, o que implica mais evapotranspiração potencial e menos água no solo disponível para escorrer pelos rios”, destaca o pesquisador.
O estudo conclui que, se as taxas de desmatamento não tiverem uma redução drástica, a escassez hídrica será uma realidade mais comum em menos de 30 anos, o que afetará a própria agricultura, a produção de energia elétrica, a biodiversidade e o abastecimento de água das populações, especialmente durante as estações secas.
A coordenadora do Programa Cerrado e Caatinga do ISPN, Isabel Figueiredo, explica que as consequências da perda de vazão dos rios podem impactar as usinas hidrelétricas no país. “O impacto observado neste estudo vai transformar muitos rios perenes em rios intermitentes, o que vai afetar inclusive nossa segurança energética, já que os rios do Cerrado são importantes para a geração de energia elétrica nas usinas de Estreito, Sobradinho, Xingó, Furnas e até Itaipu”, comenta.

Exportação de água
O pesquisador Yuri Salmona explica que o aumento da exportação de commodities mudou a governança das águas. “Isso significa que a água do rio, em vez de beneficiar as comunidades locais ou a população brasileira, está sendo controlada por empresas do agronegócio que captam um volume muito grande de água para irrigação e enviam essa água para importadores em forma de commodities”, explica.
Segundo a Agência Nacional de Águas (ANA), 68% dos recursos hídricos do Brasil são consumidos pela agricultura. Somada à parcela da pecuária, 80% das águas estão comprometidas com o agronegócio. Além do imenso crescimento no número de pivôs centrais de irrigação, a perfuração de poços profundos também tem se intensificado, impactando as águas subterrâneas.
De acordo com a rede Mapbiomas, que mapeia anualmente a cobertura e uso do solo do Brasil, 97% do desmatamento no Cerrado é causado pelo agronegócio, que é portanto principal setor produtivo responsável pelas emissões de carbono no país. Cientistas indicam que somente a agropecuária, por exemplo, emite cerca de 46% de gases de efeito estufa (GEE) no Brasil.
Conflitos socioambientais e monopólio da água
Os conflitos sociais por água são crescentes, sobretudo na região do Matopiba (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), área de maior expansão da agropecuária no Cerrado, mas também nos estados de Minas Gerais e Goiás. Das bacias hidrográficas analisadas pelo estudo, três rios apresentam casos emblemáticos cuja mudança de padrão na vazão da água começou em 1997 – o Rio Arrojado e o Rio de Ondas, na Bahia, e o Rio Corda, no Maranhão.
O Rio Corda é um dos mais ameaçados e pode se tornar intermitente nos próximos anos, se o ritmo do desmatamento continuar igual. Os três rios abastecem comunidades tradicionais da região e vêm sendo afetados pelo agronegócio extensivo no Matopiba.
Segundo investigação da Agência Pública, o agronegócio capta 1,8 bilhão de litros de água por dia de maneira gratuita no oeste da Bahia. Esse volume de água seria suficiente para abastecer cerca de 11,8 milhões de pessoas, o que corresponde à população de 22 estados brasileiros e do Distrito Federal. Parte dessa água é captada diretamente dos rios ou por meio de barramentos em riachos e veredas, além de poços artesianos que acessam diretamente o aquífero Urucuia.
A coordenadora do Programa Cerrado e Caatinga do ISPN, Isabel Figueiredo, lamenta: “Não há controle algum dos governos sobre o uso desta água e não existem compromissos de boas práticas nem controles de uso dos volumes outorgados”.
Desde 2012, a agroindústria teve acesso irrestrito à água no oeste baiano, gerando conflitos sociais por insegurança hídrica. Lá, o setor tem avançado sobre rios que abastecem os territórios que abrigam comunidades de fecho de pasto, geraizeiros, agricultores familiares e pescadores, gerando revoltas e protestos.
“O Cerrado é considerado por nós e pessoas que vieram antes de nós, a nossa caixa d’água, a nossa sustentabilidade. A nossa vida está relacionada com o Cerrado vivo, é de lá que vem a água e sem água não tem como uma comunidade sobreviver”, afirma Maria Lúcia Agostinho, geraizeira da comunidade Água Boa II, em Rio Pardo de Minas (MG). A comunidade recebeu apoio para desenvolver projetos socioambientais do Fundo Independente para a Promoção de Paisagens Produtivas Ecossociais (PPP-ECOS), uma estratégia do ISPN para a conservação ambiental por meio do uso sustentável da natureza.

Água e energia no Cerrado
Conhecido como “berço das águas”, o bioma abriga nascentes de oito das 12 bacias hidrográficas mais importantes do Brasil. O segundo maior reservatório subterrâneo natural de água do mundo, composto pelos aquíferos Guarani e Urucuia, está no Cerrado.
O Rio São Francisco, que abastece a região nordeste, tem 70% das águas originárias no Cerrado, e o Rio Paraná, que abastece a usina hidrelétrica de Itaipu, 47%. A escassez de água prevista pelo estudo também afetará a produção de energia elétrica no Brasil, já que a principal fonte geradora dessa matriz energética é a água em movimento nas usinas hidrelétricas.
“Nossa análise indica que estamos abraçando um futuro de incertezas com relação à disponibilidade de água no bioma Cerrado. Os dados nos permitem indicar uma diminuição crítica da disponibilidade de água e, consequentemente, aumento de conflitos”, alerta o autor do estudo. Para o pesquisador, os mais prejudicados serão as comunidades tradicionais locais, seguidas pelo agronegócio e por grande parte da população brasileira.
Urgência pela conservação
Apoiador da pesquisa, o ISPN destaca a necessidade de implementação de políticas públicas específicas para o bioma Cerrado, que garantam a conservação ambiental e a proteção dos povos e comunidades tradicionais e agricultores familiares, os mais afetados pela escassez e pelos conflitos relacionados à água. A falta de água nos territórios ocupados por essas famílias inviabiliza a produção de alimentos e intensifica o processo de êxodo rural e aumento da pobreza e fome.
O assessor de políticas públicas do Instituto, Guilherme Eidt, destaca que o Cerrado corre risco e precisa de atenção tanto quanto a Amazônia. “Cerrado em pé é fundamental para a garantia de segurança alimentar, segurança hídrica, segurança energética, segurança climática global e manutenção da sociobiodiversidade. Os povos, as comunidades tradicionais e agricultores familiares são essenciais para a conservação do meio ambiente e para o equilíbrio climático”, afirma.
Para Eidt, é preciso valorizar os biomas não florestais como o Cerrado e estimular uma política de transparência na cadeia de commodities, que permita rastrear os produtos desde a origem. O assessor acrescenta ainda que os países importadores e legislações internacionais são tão importantes e responsáveis quanto o Brasil nessa tarefa.
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Assessoria de Comunicação do ISPN/Letícia Verdi
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