Escola na Terra Indígena Rio Pindaré, município de Bom Jardim, no Maranhão

Escola na Terra Indígena Rio Pindaré, município de Bom Jardim, no Maranhão

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Comida tradicional na alimentação escolar: Maranhão ganha comissão da Catrapovos

Garantir que povos indígenas, quilombolas e povos e comunidades tradicionais acessem políticas públicas e forneçam os alimentos que eles mesmos produzem e consomem, no dia a dia, para as escolas onde suas filhas e filhos estudam; e que também possam receber pagamento por isso, é algo que produz efeitos para além dos limites dos territórios das comunidades. 

“Essa é uma ideia muito nova e muitas pessoas não conseguem enxergar a importância disso, mas onde tem escola, tem a política pública chegando e essa renda numa comunidade faz uma diferença enorme”, afirmou o engenheiro agrônomo Márcio Menezes, que, no último dia 6 de dezembro, foi a São Luís, no Maranhão, explicar os objetivos de um movimento que teve início no Amazonas e que, por iniciativa do Ministério Público Federal (MPF), já alcança 17 estados brasileiros: a Mesa de Diálogo Permanente Catrapovos Brasil.

A Catrapovos foi instituída pela 6ª Câmara de Coordenação e Revisão – Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do MPF para, entre outros objetivos, promover o diálogo entre órgãos governamentais e organizações da sociedade civil relacionadas ao tema de povos e comunidades tradicionais, compras públicas e soberania e segurança alimentar e nutricional. A disseminação dessa iniciativa para o âmbito nacional ocorre por meio da instalação de mesas ou comissões estaduais das quais participam entidades governamentais e organizações da sociedade civil que reconhecem a necessidade de integrar os sistemas alimentares tradicionais aos programas de alimentação escolar e a outras políticas públicas. 

A incidência da Catrapovos, isto é, a ação e argumentação das comissões junto aos Municípios, Estados e União, para incluir os povos e comunidades nas políticas públicas, orienta-se pelo conceito de autoconsumo: de que alimentos produzidos e consumidos dentro dos territórios podem ter exigências sanitárias dispensadas para compras públicas, por exemplo, na alimentação escolar. 

Na verdade, percebeu-se que exigências sanitárias impediam desnecessariamente que alimentos produzidos de maneira tradicional chegassem aos mercados institucionais, como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Esse entrave só foi contestado a partir de 2017, quando o MPF e órgãos de Vigilância Sanitária do Estado do Amazonas elaboraram a Nota Técnica Nº 01/2017 ADAF/SFA-AM/MPF-AM, que observa o “direito dos povos indígenas ao acesso à alimentação diferenciada, com respeito aos seus processos próprios de produção para o fornecimento da alimentação escolar”.

“Qual é a grande história da Catrapovos? É uma nota técnica, que virou recomendação legal do Ministério Público, valendo no Brasil todo. A nota técnica orienta os gestores públicos, no caso em que for autoconsumo, numa comunidade em que tenha uma escola, que, nessa condição, o peixe, o açaí, a farinha, o queijo… não precisam de Vigilância Sanitária”, esclarece Márcio Menezes.

O Lançamento da Catrapovos Maranhão ocorreu no auditório Manoel da Conceição durante a 2ª FEMAF

 

Catrapovos no Maranhão
O Estado tornou-se o 17º com a presença dessa iniciativa, como parte do esforço das organizações que integram a Rede de Agroecologia do Maranhão (RAMA), entre estas, o ISPN. O Instituto também está entre as organizações da composição inicial da Catrapovos Brasil e atua com a manutenção da Secretaria Executiva do Observatório das Economias da Sociobiodiversidade (ÓSocioBio), rede de 42 organizações criada para incidência em políticas públicas. 

“Nós temos uma atuação forte no Maranhão, então estamos reafirmando o nosso compromisso com a Catrapovos. Queremos, por meio da RAMA, conseguir articular sociedade civil, gestores públicos, Ministério Público e Defensoria, porque essa discussão sobre a alimentação tradicional e políticas públicas é fundamental para o desenvolvimento social”, afirmou o coordenador executivo do ISPN, Fábio Vaz, que participou do lançamento

A Catrapovos Maranhão será coordenada pelo MPF, Defensoria Pública da União (DPU), Ministério Público do Maranhão (MPMA) e Defensoria Pública do Estado do Maranhão (DPE).

Essa iniciativa é um passo importantíssimo para que a gente possa garantir que a alimentação escolar reflita a cultura e a biodiversidade do nosso estado, que é tão grande. O Ministério Público tem um histórico em defesa do direito à educação e dentro desse direito está também o direito à alimentação escolar adequada”, afirmou a promotora de Justiça, Érica Beckman da Silva.

Mais de 70 pessoas, entre representantes de organizações sociais, comunidades e órgãos da Administração Estadual e Federal, participaram do lançamento que ocorreu na programação da 2ª Feira Maranhense de Agricultura Familiar (FEMAF), promovida pela Secretaria de Estado da Agricultura Familiar do Maranhão (SAF), entre 4 e 7 de dezembro, em São Luís. A SAF se posiciona como um espaço de avanço dessa discussão no âmbito do Governo do Estado. 

“Nós apoiamos a Catrapovos porque entendemos que é importante que a alimentação que é fornecida para diversas organizações públicas, ou seja, as compras governamentais, contemplem o nosso alimento tradicional, aquele alimento que é produzido pelos quilombolas, pelos indígenas, pelas quebradeiras de coco, pelos assentamentos rurais. Eu creio que esse é um caminho que coloca a agricultura familiar em outro patamar”, afirmou o secretário Bira do Pindaré.

Mesa de abertura: Carlos Pereira, da Associação Agroecológica Tijupá/RAMA (no microfone); o defensor público da União, Giuliano Damasceno; promotora de Justiça, Érica Beckman; Cysne Aderaldo, superintendente da CONAB; Ricarte Almeida, secretário adjunto da SAF e Fábio Vaz, coordenador executivo do ISPN (Foto: Cássio Bezerra / Acervo ISPN)

Mesa de abertura: Carlos Pereira, da Associação Agroecológica Tijupá (no microfone); o defensor público da União, Giuliano Damasceno; promotora de Justiça, Érica Beckman; Cysne Aderaldo, superintendente da CONAB; Ricarte Almeida, secretário adjunto da SAF e Fábio Vaz, coordenador executivo do ISPN 

 

Experiências

“Alguns povos começaram a usar  produtos industrializados na década de 70: refrigerantes, enlatados, achocolatados, açúcar. E você vê dentro de algumas comunidades indígenas um alto índice de diabetes, mulheres com câncer. Já minha avó tem 98 anos, lúcida, é uma Tupinambá que ainda vive se alimentando de forma tradicional”, comentou Maria Lídia Tupinambá, conselheira de Educação Escolar Indígena, que representou a Associação das Mulheres Indígenas do Maranhão (AMIMA) no lançamento da Catrapovos.

Com a manutenção das exigências sanitárias que desaprovam o autoconsumo, escolas indígenas e quilombolas recebem, na maioria das vezes, enlatados, achocolatados e biscoitos, ao invés de alimentos naturais, frescos e saudáveis. Isso, além de prejudicar a saúde das crianças, contribui para o apagamento da cultura alimentar dos povos indígenas e comunidades tradicionais. 

“A pauta da alimentação escolar indígena não pode ser uma pauta de alimentos industrializados. Você não pode destinar cestas de alimentos para indígenas contendo sardinha em lata, salsicha…”, comentou o superintendente da Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) no Maranhão, Cysne Aderaldo, que participou da mesa de abertura do lançamento da Catrapovos.

A CONAB participa das primeiras experiências com o autoconsumo no Maranhão junto a comunidades indígenas e quilombolas por meio do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e conforme a Resolução nº 2, de junho de 2023, do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome. O ministério seguiu o MPF e autorizou a aquisição de alimentos dentro de terra indígena, território ou unidade de conservação e dispensou o registro, inspeção e fiscalização desses alimentos desde que consumidos no próprio território da comunidade. 

 

PAA no Maranhão

No Maranhão, a CONAB possui cerca de 200 projetos do PAA com cooperativas e associações comunitárias. Desse universo, 70% são projetos voltados para povos e comunidades tradicionais, comunidades quilombolas, mas apenas seis projetos são de comunidades indígenas. 

Um exemplo é o do povo Guajajara, na Terra Indígena (TI) Rio Pindaré, no município de Bom Jardim, que produz alimentos de origem animal e vegetal, com apoio de assistência técnica fornecida pelo ISPN, no âmbito do Plano Básico Ambiental da Estrada de Ferro Carajás – Componente Indígena Awá e Guajajara (PBA-CI). O maior entrave para transformar essa produção em renda sempre foi a comercialização.

A Associação Comunitária Mainumy, que representa a TI Rio Pindaré, tornou-se fornecedora do PAA em dezembro de 2023. O contrato tem prazo de dois anos para ser executado e valor total de R$ 603.517,33. Até o último balanço, de dezembro, as 41 famílias Guajajara que participam do contrato tinham fornecido R$ 263.267,27 mil em alimentos diversos, como galinhas caipiras, peixes, abóbora, macaxeira, milho, vinagreira, banana, limão, maxixe e melancia que foram entregues a quatro escolas dentro da TI Rio Pindaré. 

Essas famílias conseguiram acessar o PAA e tiveram um acréscimo de R$ 6,4 mil às suas rendas (em média), em um ano de projeto, para entregar alimentos frescos e saudáveis às escolas onde seus filhos e filhas estudam. Por enquanto, os alimentos são entregues in natura, mas há ambição de fornecer produtos processados, como farinha e fécula de mandioca e polpa de açaí. 

Sobre a qualidade desses alimentos, Márcio Menezes explicou que a ausência das exigências sanitárias não representa descuido. A Nota Técnica 01/2017 recomenda a dispensa do registro sanitário na aquisição de proteína e de produtos vegetais processados, provenientes das próprias comunidades ou aldeias, nas compras públicas. “Mas a qualidade desses alimentos na entrega precisa ser atestada pela nutricionista da escola, que pode perfeitamente constatar se os alimentos estão em condições adequadas para o consumo”, explica. A Nota Técnica também restringe essa comercialização a pequenas distâncias: os alimentos devem ser produzidos e consumidos dentro do próprio território. Um desafio, portanto, é ampliar o acesso de comunidades indígenas a programas como o PAA ou o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). 

E, diferentemente do que ocorre na TI Rio Pindaré, algumas comunidades indígenas não têm condições de produzir alimentos e vivem do artesanato, como lembrou Maria Lídia Tupinambá. “Como eu vou plantar num território que não tem área para plantar? Que não tem nem onde caçar? Que fizeram só um território, colocaram lá comunidade e ela vive de artesanato. Aquela comunidade ali não tem uma alimentação adequada”.

A missão da Catrapovos Maranhão agora é disseminar a possibilidade do autoconsumo nos espaços escolares das comunidades indígenas, quilombolas e tradicionais. A primeira reunião da comissão maranhense será na segunda quinzena de janeiro de 2025. 

 

Meio ambiente

Rio Pindaré
Cidade de Monção na margem ao fundo. A margem em primeiro plano fica no município de Pindaré-Mirim. Águas do Rio Pindaré durante a estiagem, em setembro de 2023 – Foto: Cássio Bezerra/Acervo ISPN (Foto: Cássio Bezerra)

Além da geração de renda e saúde, o acesso a políticas públicas, como a do autoconsumo na alimentação escolar, valoriza e fortalece o conhecimento e os modos de vida ancestral e tradicional. Isso tem reflexos para toda a sociedade. 

O estudo “O Desmatamento da Floresta Amazônica no Vale do Pindaré” observa que restam menos de 20% da floresta inicialmente observada no vale de um dos mais importantes rios do Maranhão, com 600 km de extensão e que banha mais de 30 cidades. 

Essa floresta restante está dividida em blocos isolados e localizados dentro das TIs Alto Turiaçu, Awá, Caru, Araribóia, Governador, Krikati e também na TI Rio Pindaré, em Bom Jardim, onde vivem as 43 famílias indígenas contratadas no PAA. Elas ajudam a preservar a floresta e as águas. 

Para os indígenas, os rios, a floresta e toda a natureza são muito mais do que uma fonte de sobrevivência. Uma lição que os não indígenas precisam aprender. 

Assessoria de Comunicação do ISPN / Cássio Bezerra

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