Formação “Cerrativismo: Mulheres das Águas”, promovida pelo ISPN, reúne lideranças de seis estados para debater direitos territoriais, meio ambiente e participação política
“Nós somos a incidência política”, declarou Maria de Lourdes, geraizeira de Balsas (MA), ao final do primeiro módulo do curso “Cerrativismo: Mulheres das Águas”, que reuniu 30 mulheres indígenas e de comunidades tradicionais de seis estados brasileiros entre os dias 10 e 12 de junho, em Brasília.
Iniciativa do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN) com apoio do Fundo de Parceria para Ecossistemas Críticos (CEPF), a formação tem objetivo de fortalecer agentes de transformação em seis paisagens estratégicas ecossociais: Alto Jequitinhonha (MG), oeste da Bahia, sul do Maranhão, territórios Kaiowá-Guarani (MS), Goiás e sul do Piauí.
Composto de três módulos presenciais, com o segundo e terceiro previstos para agosto e outubro, o curso está focado no fortalecimento da incidência política, com desenvolvimento de lideranças e empoderamento comunitário.

O sul do Maranhão, onde Maria de Lourdes vive, é uma das áreas mais pressionadas pelo desmatamento para a expansão da monocultura. “Nós moramos e conhecemos a região. Sabemos o que tem lá: a fauna, a flora. Nós fazemos nossa defesa. Somos as guardiãs do ambiente”, afirmou Maria de Lourdes.
Moradora há duas décadas nos gerais de Balsas — região marcada pelo avanço da fronteira agrícola Matopiba, formada pelos estados Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia —, ela conta que aprendeu a viver “no mato” e desenvolveu um forte vínculo com o Cerrado: “Hoje, defendo e estou aqui para dar o melhor de mim pelo campo e pela biodiversidade”.

Foi esse entorno que a motivou a integrar a formação cerrativista. O caso de Roberta Alves Silva, do Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica (CAV), é parecido.
Moradora do Alto Jequitinhonha, Roberta explica que o objetivo de sua organização comunitária é “levar informação para o povo, divulgar nosso território, nossas ações, identidade e cultura”.
“Dentre outras coisas, esse primeiro módulo me despertou para usar as artes como ferramenta de incidência, com foco na formação das bases e sensibilização da população”, afirmou.
A região mineira sofre com os impactos do monocultivo de eucalipto desde os anos 1970, provocando perda de biodiversidade e o secamento de rios e nascentes. Segundo Roberta, é preciso dar visibilidade às formas de vida e aos saberes locais.

Do território Kalunga, em Cavalcante (GO), Alcileia Torres, comunicadora da Kalunga Comunicações, relata os conflitos vividos pela comunidade quilombola do Vão de Almas diante da ausência de titulação legal das terras. Hoje, existem mais de 3.500 comunidades quilombolas autodeclaradas no Brasil, mas menos de 150 foram tituladas — conforme dados do IBGE.
“Por meio da arte de contar histórias, mostramos que existimos. O território é a base da nossa existência. Sem ele, não se pode falar de cultura, saúde ou educação”, declarou Alcileia.
Para ela, a comunicação é uma resposta à violência institucional e aos projetos de lei que ameaçam os direitos dos povos tradicionais.
No sul do Piauí, a quilombola Maria Derismar, da comunidade Parentina, denuncia o avanço da grilagem e o desmatamento em sua região:
“Eles dizem que a terra é deles e a gente não sabe o que fazer. As nossas nascentes estão secando. Pedimos, pelo amor de Deus, que as autoridades nos ajudem”.

Na comunidade de Gatos, em Formosa do Rio Preto (BA), a geraizeira Karina Guedes também relata os impactos do agronegócio. Presidente da Associação Geraizeira Cacimbinha e Gatos, ela denuncia contaminação dos rios, deslizamento de terras e intoxicação da população por agrotóxicos.
Assim como no Jequitinhonha, as comunidades no oeste da Bahia vivem no território há mais de 300 anos, mas enfrentam grilagem desde os anos 1970. “A gente tem que responder na Justiça por crimes ambientais que não cometemos. Estamos só pastoreando nosso gado”, lamenta Karina.
Uma das estratégias encontradas foi dar visibilidade às culturas locais. “Estamos mostrando nossos artesanatos na feira. Isso é importante para mostrar quem somos e o que acontece na comunidade.”

No território indígena Laranjeira Ñanderu, em Rio Brilhante (MS), a Kaiowá-Guarani Liléia Pedro de Almeida destaca que “as florestas estão acabando e o povo adoecendo por causa do envenenamento com agrotóxicos”.
“Na minha área, a única vegetação preservada é a nossa mata. Ela é nossa esperança de que tudo não seja destruído.”
“A gente não é ouvido em Brasília. O PL do Marco Temporal (PL 2903/2023) avança mesmo com toda a nossa mobilização. A terra está morrendo, o sangue dela está contaminado, e o sobrevivente pede socorro.”

Parte da programação do encontro, o assessor de Advocacy do ISPN Vitor Hugo Moraes ministrou uma oficina de Introdução à Incidência Política, propondo um debate sobre direitos humanos, políticas públicas, e participação popular. Na sequência, as mulheres cerrativistas deram um pontapé no plano de incidência que deve ser desenvolvido ao longo de toda a formação.
“Reconhecemos a importância de valorizar e fortalecer as ações de incidência que são realizadas pelas participantes, do nível local ao internacional”, explicou Moraes.
Em outro momento importante da formação, as mulheres cerrativistas estiveram presentes na estreia da série de curta-metragens “Cerrado: Coração das Águas”, realizado pelo ISPN no tradicional Cine Brasília, na quarta-feira, 11 de junho. Neste dia, a telona foi transformada em palco de resistência e celebração do bioma.


O evento reuniu os diretores Luiz Felipe Silva e Fellipe Abreu, além de convidados que protagonizam a luta pela conservação: Taynara Moraes, pantaneira de Bonito (MS), e Denervaldo Silva, fecheiro de pasto da Vereda da Felicidade, no oeste da Bahia — ambos retratados no documentário.

Muitas das mulheres participantes do Cerrativismo tiveram a oportunidade de entrar pela primeira vez em uma sala de cinema. Veja no vídeo.
O que é o Cerrativismo
O projeto Cerrativismo surgiu com o objetivo de fortalecer o ativismo e a incidência política no Cerrado, instrumentalizando a sociedade civil e os movimentos sociais em defesa do bioma.
A proposta busca contribuir para o equilíbrio de forças nos territórios, gerando benefícios socioambientais duradouros.

A primeira edição foi realizada em 2019 no oeste da Bahia, com apoio do CEPF. Em 2023, uma nova etapa foi promovida no sul do Piauí, por meio do Projeto Ceres, em parceria com WWF-Brasil e organizações locais.
Quer conhecer outras experiências e saber mais sobre o projeto? Acesse a cartilha sobre a formação no oeste baiano ou assista ao vídeo sobre a formação no sul do Piauí.
Texto por Camila Araujo/Assessora de Comunicação do ISPN.