O parecer técnico dizia ser uma atividade de “baixo impacto ambiental”: um desmatamento em larga escala, em pleno Cerrado, próximo de nascentes e de comunidades tradicionais na zona rural de Balsas, sul do Maranhão. Nenhuma audiência pública, nenhuma consulta às famílias. Quando as lideranças locais procuraram o órgão ambiental para compreender o processo, ouviram que “estava tudo dentro da legalidade”. Mas, no Cerrado, essa legalidade frequentemente mascara danos irreversíveis. Em nome de uma ideia de “progresso”, a terra é licenciada para desaparecer.
É assim que o bioma mais estratégico do Brasil – e um dos mais antigos e biodiversos do planeta – segue sendo apagado: não apenas por correntões, motosserras e fogo, mas por licenças administrativas, autorizações para supressão da vegetação nativa, dispositivos legais permissivos e discursos de progresso. O Cerrado não desaparece por acidente. Ele é apagado sistematicamente por uma lógica de exclusão: não é floresta, não é prioridade, não tem “carbono suficiente”, não rende prestígio internacional. E agora, prestes a sediar a COP30 em território amazônico, o Brasil corre o risco de repetir esse mesmo erro: apagar o Cerrado da agenda climática.
Desmatamento em alta e invisibilidade em expansão
Segundo dados do INPE, o desmatamento no Cerrado atingiu 7.882 km² entre agosto de 2022 e julho de 2023 — o maior índice em uma década e superior à taxa da Amazônia no mesmo período. Em 2024, as taxas permanecem alarmantes, com destaque para a região do MATOPIBA, onde a fronteira agrícola segue avançando com força sobre territórios tradicionalmente ocupados por comunidades indígenas, quilombolas, geraizeiras, quebradeiras de coco babaçu e camponesas. A devastação é intensificada por grandes empreendimentos de monocultura, pecuária e mineração — setores frequentemente beneficiados por licenciamentos ambientais frágeis e legislações cada vez mais permissivas.
Exemplo disso é o Projeto de Lei nº 2.159/2021, aprovado no Congresso Nacional, que pretende instituir a autodeclaração como regra no processo de licenciamento ambiental. Num bioma como o Cerrado, com vegetação menos densa, mapeamento de terras públicas precário e ampla atuação de órgãos estaduais—, historicamente vulneráveis ao poder político e econômico do agronegócio, tal proposta equivale, na prática, a uma autorização generalizada para desmatar.
A COP da Amazônia… e do silêncio sobre o Cerrado
Enquanto a COP30 é anunciada como a “COP da Amazônia” — e sim, a floresta amazônica merece toda a atenção — o Cerrado, que alimenta essa mesma floresta com suas nascentes, rios, aquíferos e ciclos hidrológicos, permanece praticamente ausente das agendas oficiais. A programação da conferência, centrada em temas como financiamento climático, transição justa, adaptação transformadora, responsabilidade comum mas diferenciada, com forte protagonismo indígena, ainda não reconhece o Cerrado sequer como pauta transversal.
Até o momento, o bioma só aparece em eventos paralelos, organizados por redes da sociedade civil e por esforços técnicos descentralizados, como os Diálogos pelo Clima e encontros regionais. Iniciativas fundamentais, mas ainda insuficientes diante da escala da crise. Essa omissão carrega consequências profundas. Especialistas vêm alertando: se o Cerrado não entrar na estratégia climática oficial da COP30, o Brasil desperdiça uma oportunidade histórica de liderar uma agenda ambiental orientada para os múltiplos ecossistemas e favorecer uma sinergia justa, representativa e eficaz entre as três convenções da ONU – de clima, biodiversidade e desertificação.
Ecossistemas não-florestais e a “visão-túnel do carbono”
O debate climático global ainda opera com uma visão reducionista centrada exclusivamente no carbono, a chamada carbon tunnel vision. Nessa lógica, os ecossistemas mais densos em biomassa são priorizados, em detrimento de savanas, campos e outros ecossistemas abertos que desempenham funções igualmente importantes.
O Cerrado abriga cerca de 5% da biodiversidade do planeta, é o berço das principais bacias hidrográficas da América do Sul e sustenta o regime de chuvas da Amazônia, do Pantanal e de parte do Sudeste e Centro-Oeste brasileiros. É um pilar invisível da estabilidade climática continental. Ele é o coração hídrico do continente. Ignorá-lo nas negociações climáticas é um erro técnico, político e ecológico.
Apesar disso, permanece fora dos mecanismos de financiamento climático. Mesmo os compromissos multilaterais voluntários mais celebrados, como os pledges de Glasgow na COP26 — que prometeram mais de US$ 19 bilhões para ações de proteção florestal — continuam restritos a ecossistemas definidos como “florestas” e excluem as savanas tropicais. Isso se repete em outras iniciativas, como a New York Declaration on Forests, o novo Tropical Forests Forever Facility (TFFF) e os princípios de elegibilidade de diversos fundos públicos e privados.
Essas definições excludentes perpetuam a invisibilização do Cerrado. Se o bioma não cabe na linguagem dos compromissos globais, não cabe, por consequência, no financiamento. Se queremos soluções reais baseadas na natureza (nature-based solutions), precisamos reconhecer o valor do Cerrado para além do carbono.
Cadeias globais e responsabilidade compartilhada
A União Europeia aprovou em 2023 o Regulamento sobre Produtos Livres de Desmatamento (EUDR), que exige rastreabilidade geográfica para produtos como soja, carne e madeira. Embora avance na responsabilização das cadeias de suprimento, a EUDR adota a definição de floresta da FAO, e foca exclusivamente no “desflorestamento”, deixando de fora a conversão de outros ecossistemas nativos não florestais, como o Cerrado.
Essa limitação metodológica contribui para deslocar a pressão sobre áreas legalmente protegidas na Amazônia para regiões com menor proteção institucional, como o Cerrado. A falta de cobertura da EUDR para savanas abre brechas regulatórias e cria zonas de sacrifício legalizado, onde a devastação ocorre com maior intensidade, mas sem atenção internacional proporcional.
O resultado é que desse bioma saem toneladas desses produtos para mercados europeus, chineses e norte-americanos, muitas vezes oriundos de áreas desmatadas ilegalmente ou ocupadas irregularmente. Dados do MapBiomas Alerta mostram que mais de 93% do desmatamento no Cerrado em 2024 apresentava indícios de ilegalidade.
Ignorar o Cerrado nas discussões da COP30 significa perpetuar uma cadeia de destruição globalmente subsidiada, onde alimentos produzidos sobre territórios devastados continuam cruzando fronteiras sem que os mercados assumam sua parcela de responsabilidade. É preciso alinhar os compromissos climáticos aos compromissos comerciais, com justiça socioambiental e respeito aos direitos dos povos que conservam a biodiversidade, incluindo metas específicas e referências explícitas para a proteção e zero conversão de ecossistemas, não apenas desflorestação — “deforestation and conversion-free supply chains”.
Território de vida, não de sacrifício
A devastação do Cerrado não é apenas um problema ecológico. É uma injustiça climática, territorial, racial, hídrica e jurídica. As comunidades que vivem nesse bioma são sistematicamente excluídas dos processos decisórios, e frequentemente criminalizadas por defenderem seus territórios, como no recente caso da prisão de Solange Moreira e Vanderlei Silva, lideranças camponesas da Bahia.
São essas comunidades que mantêm o Cerrado vivo, mesmo sem incentivos públicos, proteção institucional ou políticas de valorização de seus modos de vida. E, apesar disso, continuam ausentes das estruturas formais de governança climática e ambiental — nacionais e internacionais.
A hora de romper o silêncio
A COP30 representa uma chance histórica para corrigir esse apagamento. Não se trata de competir por atenção, mas de reconhecer a interdependência entre os biomas. Não é possível proteger a Amazônia ignorando o Cerrado. Não se faz justiça climática excluindo os povos do Cerrado. Não haverá equilíbrio ecológico, hídrico e climático no continente se o bioma que sustenta tudo isso for licenciado para desaparecer.
O Cerrado precisa estar no centro das metas climáticas nacionais. Precisa ser contemplado pelos fundos de financiamento internacionais. Precisa ser reconhecido como prioridade em políticas de conservação. E, acima de tudo, precisa entrar na narrativa política da COP30 como ecossistema essencial e como território de luta, de vida e de resistência.
Quando a comunidade tradicional no sul do Maranhão soube do desmatamento à beira das nascentes, não foi o barulho das máquinas que mais os assustou. Foi o silêncio: o silêncio dos pareceres assinados sem consulta, das reuniões que nunca aconteceram, dos papéis que apagaram gente viva do mapa.
É evidente que, sem justiça territorial, não há solução climática legítima. É preciso coragem, reparação histórica e compromisso real com a justiça climática. O mundo não pode mais ignorar a savana mais biodiversa do planeta.