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Indígenas fazem história na COP30 e demandam demarcação como solução climática

Povos indígenas são protagonistas da conservação da natureza e marcam presença na COP30 lutando por demarcação de terras, justiça climática, acesso a financiamentos e a permanência no ensino superior

A 30ª Conferência das Partes sobre Mudança do Clima (COP30), que aconteceu de 10 a 21 de novembro em Belém (PA), registrou a maior presença indígena da história da conferência. Povos do Brasil e do mundo organizaram e participaram de marchas, plenárias e espaços para lutar por direitos e reconhecimento dos conhecimentos indígenas como parte das soluções para conter os impactos das mudanças climáticas. Foram mais de cinco mil indígenas na capital paraense, de acordo com a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, sendo 400 do Brasil e 500 do restante do mundo credenciados para entrar na Zona Azul, espaço de negociações e decisões da COP.

Na Zona Verde, Lileia Kaiowá ao lado de Raoni e outras lideranças discutiram território e espiritualidade. Foto: Bruna Braz/Acervo ISPN

Manifestações na COP 30 e as demarcações anunciadas

Considerando a importância das terras indígenas na conservação do meio ambiente no planeta, as principais reivindicações dos povos indígenas foram a demarcação dos territórios como medida eficaz contra o desmatamento e a crise climática e o financiamento direto para povos indígenas, por meio de suas organizações representativas.

Estudos e levantamentos comprovam a relevância das terras indígenas para a conservação da biodiversidade e proteção de espécies e ecossistemas com consequências positivas diretas na manutenção do equilíbrio climático no Brasil. De acordo com estudo do MapBiomas, no período de 1985 a 2023, as terras indígenas perderam 1% de sua vegetação nativa, enquanto propriedades privadas, no mesmo período, suprimiram 28%. Esse número representa, conforme estudo do Instituto Socioambiental, a proteção, por parte das terras indígenas, de 20,3% das florestas do país.

Diante desse quadro, a COP30 também foi espaço para uma série de reivindicações de movimentos indígenas, em favor da conservação de seus territórios e da saúde de suas comunidades abaladas pelo garimpo ilegal e projetos desenvolvimentistas previstos. Foi assim que, no dia 14 de novembro pela manhã, cerca de 100 indígenas da região do Médio e do Alto Tapajós bloquearam por algumas horas a entrada da Zona Azul, exigindo audiência com o presidente Lula.

Além de demandar celeridade nos processos de demarcação e de denunciar os efeitos da poluição, pelo garimpo e agrotóxicos, dos rios que abastecem seu território, o povo Munduruku entregou documento solicitando a revogação do Decreto 12.600, que prevê a privatização de empreendimentos públicos federais do setor hidroviário, nos rios Tapajós, Madeira e Tocantins. O documento apresentado pelas lideranças também solicita o cancelamento da ferrovia EF-170 (Ferrogrão) e exige decisões coletivas, consulta livre, prévia e informada e um diálogo direto com o presidente Lula e outras autoridades, em relação aos projetos e empreendimentos que impactem seus territórios.

Como resultado, os indígenas foram recebidos pelo presidente da Conferência, André Corrêa do Lago, e pela ministra do Ministério dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara. E, no dia 17 de novembro, escutaram do ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, Guilherme Boulos, na Marcha Global Indígena em Belém, que “não haverá uma única obra sem consulta prévia às comunidades indígenas e quilombolas”.

Ainda no dia 17/11, o governo federal anunciou a homologação de quatro terras indígenas, as assinaturas de 10 portarias declaratórias e ainda a aprovação de seis Relatórios Circunstanciados de Identificação e Delimitação (RCID) da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI). No mesmo dia milhares de povos indígenas foram às ruas na marcha “A Resposta Somos Nós”, fruto da campanha do movimento indígena do Brasil, endossada por diversos movimentos sociais, lembrando que a resposta para a crise climática se encontra nos territórios indígenas, quilombolas e dos demais povos e comunidades tradicionais.

Mesas indígenas na COP30

Visando dar maior visibilidade às causas e povos indígenas, o Instituto Sociedade População e Natureza (ISPN) organizou, em parceria com organizações indígenas, da sociedade civil e instituições governamentais, três mesas de discussão em diferentes espaços da COP.

A primeira aconteceu no dia 12 de novembro e teve como tema “Protagonismo indígena na pesquisa sobre clima e biodiversidade: debatendo a permanência de estudantes indígenas no ensino superior”. O evento aconteceu na Teia da Gente – Casa do IEB na COP30 e teve como objetivo discutir a importância da pesquisa científica realizada por acadêmicos indígenas; suas contribuições para a reflexão sobre as mudanças do clima; e a importância de seus territórios. O pano de fundo foi a necessidade do aprimoramento das políticas de permanência no ensino superior, enquanto espaços privilegiados de desenvolvimento da produção científica.

Participantes da mesa “Protagonismo indígena na pesquisa sobre clima e biodiversidade: debatendo a permanência de estudantes indígenas no ensino superior”. Foto: Juliana Simões/Acervo ISPN

A programação reuniu pesquisadoras e pesquisadores indígenas que movimentam saberes, territórios e universidades, construindo ciência com corpo, memória, espiritualidade e diálogo epistemológico. O painel contou com a presença da coordenadora da Câmara Setorial das Guardiãs e dos Guardiões da Biodiversidade (CSG), Cristiane Julião Pankararu; a estudante de Antropologia na Universidade de Brasília (UnB), vice-coordenadora da Sitoakore e secretária executiva da Associação dos Acadêmicos Indígenas da Universidade de Brasília (AAIUnB), Niara Nukini; coordenadora da Organização dos Professores Indígenas do Acre (OPIAC), mestre pela Universidade Federal do Acre (AC), Edileuda Shanenawa; o assessor técnico do Programa Indígena de Permanência e Oportunidades na Universidade (PIPOU), do ISPN, Francisco Sarmento Tukano; e a mediação do coordenador do Programa Povos Indígenas do ISPN, João Guilherme Nunes Cruz.

O ISPN busca empreender esforços em estratégias para permanência de estudantes indígenas no ensino superior através do Programa Indígena de Permanência e Oportunidades na Universidade (PIPOU), que oferece bolsas de estudo, equipamentos como notebooks e atividades formativas para ajudar na permanência e sucesso desses estudantes em suas trajetórias acadêmicas.

O debate focou na permanência e trajetórias de estudantes indígenas no ensino superior, relatando os desafios que vão além das dificuldades econômicas que existem, mas também o distanciamento do território e a falta de acolhimento. Niara Nukini relatou os preconceitos que acontecem, a saudade de casa e a dificuldade de deixar a família e os filhos.

A conversa destacou a importância do protagonismo indígena em espaços privilegiados como a Universidade. Edileuda Shanenawa disse que é essencial que os estudantes e pesquisadores indígenas tenham seus trabalhos publicados e tragam as conquistas para as comunidades.

“Precisamos resistir para existir. (…) Nós não queremos que falem por nós. (…) Respeitem a nossa ciência, porque nosso conhecimento existe, e nossa espiritualidade existe”, clamou.

“Nós não queremos que falem por nós”, disse Edileuda Shanenawa. Foto: Juliana Simões/Acervo ISPN

Cristiane afirmou que é fundamental o acesso não só aos materiais e às informações: “não é simplesmente passar no vestibular. O acesso se decanta em vários contextos, inclusive o acesso às pessoas.” Francisco Tukano complementou dizendo que existem muitos jovens empenhados em aprender, mas não basta só o acesso.

“Precisamos pensar na permanência e nas políticas adequadas para a concretização do curso. Ainda que tenha bolsa, são muitos estudantes que desistem por desafios como a linguística, em relação ao português”, disse.

Cristiane Julião, coordenadora da CSG, e Francisco Tukano, assessor técnico do ISPN, debateram o acesso e permanência de indígenas nas Universidades. Foto: Juliana Simões/Acervo ISPN

Além desses desafios, foi citada a necessidade de uma aliança que envolva poder público, universidades, sociedade civil e acadêmicos indígenas na busca de soluções para fortalecer políticas e programas de permanência de estudantes indígenas no ensino superior.

A relação dos Mosaicos com a conservação do meio ambiente

A segunda mesa aconteceu no dia 14 de novembro, também no espaço Teia da Gente – Casa do IEB na COP 30. O evento reuniu lideranças indígenas, pesquisadores, gestores públicos e representantes da sociedade civil que discutiram o tema “Mosaicos e territórios vivos: gestão integrada de áreas protegidas e o protagonismo de povos indígenas e tradicionais”.

Os Mosaicos são conjuntos de áreas protegidas próximas umas das outras (sejam públicas ou privadas), cuja gestão se estimula que seja realizada de forma articulada e integrada, para atingir objetivos de conservação em comum, compatibilizando a biodiversidade, a sociodiversidade e o desenvolvimento sustentável.

O ISPN atua nessa agenda, no sentido de fortalecer alianças amplas entre áreas protegidas para a conservação da biodiversidade, o equilíbrio climático e o bem-viver das comunidades indígenas. Exemplo emblemático é o Mosaico Gurupi, cujo reconhecimento oficial pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) ocorreu em 18 de julho de 2025, na comemoração dos 25 anos do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC). O Mosaico Gurupi foi o primeiro mosaico da história do Brasil em que a maior parte das áreas protegidas é composta por terras indígenas.

A mesa propôs um diálogo sobre experiências de governança e gestão territorial integrada e colaborativa de Mosaicos de Áreas Protegidas. Destacou-se a importância das alianças entre povos indígenas, comunidades tradicionais, instituições de pesquisa e gestores públicos na conservação da biodiversidade e na construção de soluções justas para os desafios climáticos e socioambientais.

O painel teve a participação do agente agroflorestal Indígena do povo Huni Kuī, Josias Maná, da Terra Indígena Rio Jordão no Acre. Ele é articulador comunitário, atual presidente da Associação Indígena Raya e consultor da CPI-Acre e faz um trabalho de gestão integrada com os vizinhos da Reserva Extrativista Alto Tarauacá. Josias enfatizou a importância de valorizar a ciência dos povos indígenas, cuidar da floresta e manter ela em pé. “A COP30 precisa nos ouvir. Nós somos os maiores protetores da biodiversidade”, disse.

“A COP30 precisa nos ouvir”, clamou Josias Maná. Foto: Juliana Simões/Acervo ISPN

A assessora de advocacy no Programa Povos Indígenas do ISPN que mediou o painel, Márcia Ever, completou ao dizer que os povos indígenas e tradicionais têm a conservação na própria cultura. Sobre as perspectivas e próximos passos nessa luta e os caminhos possíveis para fortalecer os mosaicos de áreas protegidas, ela disse que “as experiências estão dando muito certo apesar dos desafios. A esperança vem através da junção das instituições e dos povos para que a gente possa ir além, preservando as florestas, a cultura e os territórios”.

A Constituição Federal de 1988 reconhece o direito à propriedade dos quilombolas sobre as terras que tradicionalmente ocupam, de acordo com o Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). Apesar de não serem classificadas formalmente como Áreas de Proteção Ambiental, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) conduz um processo de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação, regulamentado pelo Decreto nº 4.887/2003.

A integrante da coordenação da Rede de Mosaicos de Áreas Protegidas (REMAP) e diretora do Instituto Rosa e Sertão, Damiana Campos, afirmou que as terras de pretos não eram vistas como terras de conservação e relembrou casos de racismo ambiental.

“Se tiver alguém cometendo racismo ambiental ou perseguindo comunitários que estão em área protegida, temos que denunciar. Somente com letramento do direito dos povos a gente vai conseguir estar nesses lugares dos Mosaicos”, destacou.

Damiana Campos da coordenação REMAP defende o letramento do direito dos povos . Foto: Juliana Simões/Acervo ISPN

A visão da construção de caminhos para fortalecer territórios vivos e articulados foi enfatizada por meio de outros integrantes do painel como a coordenadora da Coordenação das Organizações e Articulações dos Povos Indígenas do Maranhão (COAPIMA), Marcilene Guajajara; o auditor de Concessão e Outorga Florestal da Secretaria de Estado do Meio Ambiente do Amapá (SEMA/AP), Euryandro Costa; a conselheira do Mosaico Gurupi e pesquisadora do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), Claudia Lopez; a coordenadora executiva da Comissão Pró Indígenas do Acre (CPI-Acre), Vera Olinda; e o coordenador do Programa Povos Indígenas do ISPN, João Guilherme.

Marcilene Guajajara enfatizou que o Mosaico Gurupi foi recentemente reconhecido pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA): “para nós foi um avanço muito grande e esperamos que essa experiência possa ser espelhada em territórios”.

Fundos comunitários para a justiça socioambiental e climática

Outra pauta abordada na COP30 foi o financiamento direcionado para povos indígenas e povos e comunidades tradicionais. Na noite do dia 15 de novembro, no Círculo dos Povos na Zona Verde da COP30, o ISPN organizou o painel “Fundos comunitários e para comunidades: em defesa do clima, da biodiversidade e do bem-viver”.

A mesa foi composta por representantes do Fundo Ecos do ISPN, João Guilherme Nunes Cruz e mediação de Cristiane Azevedo; do Fundo Quilombola Mizizi Dudu da Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombolas do Pará (Malungu), Lailton Rodrigues; do Fundo Puxirum do Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS), Maria do Socorro Teixeira; e do Fundo Jaguatá da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Luana Kaingang.

Na ocasião, também houve o lançamento do Fundo Maracá vinculado à Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME), representado por Cassimiro Tapeba. Os participantes compartilharam caminhos de autonomia e gestão comunitária dos territórios por meio de fundos comunitários, instrumentos que fortalecem os modos de vida, a conservação e a resistência.

No caso do Fundo Ecos, João Guilherme do ISPN, relatou que se trata de um mecanismo de apoio financeiro voltado para projetos comunitários focados na conservação ambiental e no desenvolvimento social sustentável nos biomas Cerrado, Caatinga e Amazônia. “Seja via editais amplos ou aqueles direcionados exclusivamente aos povos indígenas, já apoiamos organizações representativas de ¼ das etnias reconhecidas no país, nos biomas Amazônia, Cerrado, Caatinga, Mata Atlântica e Pantanal, somando algumas centenas de projetos”, apontou.

Cassimiro Tapeba celebrou o lançamento do Fundo Maracá, tão fundamental para os povos indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo.

“A criação de novos fundos não é uma competição. São mecanismos para descentralizar e democratizar os recursos para as nossas bases, para as nossas aldeias, para os nossos povos’’, afirmou. Luana Kaingang reforçou que “nós, povos indígenas, somos capazes. A resposta somos nós.”

A conversa continuou permeando a titulação das terras quilombolas e dos desafios do recurso chegar na base, como a burocracia nos processos. O representante do Fundo Quilombola Mizizi Dudu, Lailton Rodrigues, declarou casos de violação, mesmo tendo titulação.

“Saber que as comunidades estão sendo tituladas é saber que estamos no caminho certo. Nossa luta é pela titulação, para termos garantia, respeito e segurança nos territórios. Tem comunidade que está sendo titulada e está sendo violada”, acrescentou.

Além disso, ele enfatizou o protagonismo e identidade quilombola nessa luta: “nós sabemos nossas dores, de onde nós viemos e para onde queremos ir. Nós temos que ser ouvidos. Somos a esperança de um mundo melhor para proteger a natureza.”

Representando os povos extrativistas, Maria do Socorro, complementou afirmando que “nós, das florestas, já nascemos fazendo reflorestamento e plantio. Nós que precisamos receber o dinheiro. O recurso precisa estar na mão do povo, dos guardiões da floresta”. Ela também contou sobre a criação do Fundo Puxirum.

“Fomos discutindo a necessidade de criar o Fundo para fortalecer as organizações e ampliar o acesso dos extrativistas aos recursos financeiros. O nome ‘’Puxirum’’ significa mutirão: foi um mutirão para criar, para executar e para ser beneficiado”.

Para concluir, João Guilherme disse que ‘’no conjunto destas iniciativas, buscamos, a partir das temáticas e projetos que desenvolvemos com nossos parceiros indígenas, contribuir com os debates na COP 30 sobre a relevância de seus territórios para a conservação da biodiversidade e manutenção do equilíbrio climático. Isso nos revela que os sistemas socioculturais indígenas demonstram concretamente que existem outras concepções e formas de lidar com o meio ambiente e seu manejo.”

Participantes da mesa “Fundos comunitários e para comunidades: em defesa do clima, da biodiversidade e do bem-viver”. Foto: Juliana Simões/Acervo ISPN

 

 

 

 

Autoria: Juliana Simões com colaboração de Andreza Baré e João Guilherme Nunes

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