Comunidades de Fundo e Fecho de Pasto no Oeste da Bahia: modo de vida sustentável que conserva os recursos hídricos. Foto: Fellipe Abreu/Acervo ISPN

Comunidades de Fundo e Fecho de Pasto no Oeste da Bahia: modo de vida sustentável que conserva os recursos hídricos. Foto: Fellipe Abreu/Acervo ISPN

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Comunidades locais e povos afrodescendentes avançam na luta por reconhecimento no regime climático da ONU

Iniciativa global busca consolidar espaço político permanente para garantir participação efetiva e justiça climática na UNFCCC

Desde 2018, organizações comunitárias da América Latina, África e Ásia vêm articulando esforços para fortalecer o reconhecimento e a participação das comunidades locais no regime climático da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC).

Apesar de desempenharem papel essencial na conservação da biodiversidade e na regulação e adaptação climática, essas comunidades ainda não têm representação formal nos espaços decisórios da Convenção. A iniciativa apoiada pelo Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), com suporte do Instituto Clima e Sociedade (iCS), em conjunto com diversos parceiros nacionais e internacionais, busca corrigir essa lacuna histórica e estrutural, abrindo caminho para um regime climático de reparação e justiça.

“É tempo de romper o silêncio institucional que ainda invisibiliza as comunidades locais e povos afrodescendentes — sem o reconhecimento pleno de quem cuida da Terra, não haverá justiça climática nem futuro comum possível”, afirma o coordenador de Advocacy e Políticas Públicas do ISPN, Guilherme Eidt.

Reconhecimento ainda desigual

Os povos indígenas são reconhecidos oficialmente como uma constituency (Organizações de Povos Indígenas – IPO, na sigla em inglês) desde a COP7 (2001). Já as comunidades locais seguem invisibilizadas, mesmo estando mencionadas no Acordo de Paris (Preâmbulo e Artigo 7) e em diversas decisões da Conferência das Partes (2/CP.24, 16/CP.26 e 14/CP.29).

A falta de reconhecimento limita o acesso dessas comunidades a espaços de negociação, mecanismos de consulta e financiamento climático, restringindo sua influência sobre políticas que impactam diretamente seus territórios e modos de vida.

Essa exclusão é ainda mais grave quando afeta povos afrodescendentes e quilombolas, que enfrentam o racismo ambiental e sofrem de forma desproporcional os impactos das mudanças climáticas, mesmo sendo guardiões de territórios-chave para a biodiversidade e o equilíbrio climático global.

A transumância na África Ocidental: sistema tradicional de pecuária extensiva que envolve a migração sazonal de pastores e seus rebanhos para acessar melhores pastagens e fontes de água. Essa prática é essencial para a sobrevivência das comunidades pastoris, como os Fulani, em uma região com variações climáticas significativas. Foto: Acervo CORET

Marcos recentes na agenda internacional

Nos últimos anos, decisões e processos dentro da UNFCCC e da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) vêm abrindo caminho para uma maior equidade participativa.

  • COP16 (Cali, 2024) – Pela primeira vez, um texto oficial da CDB incluiu referência explícita a povos afrodescendentes, reconhecendo sua contribuição na conservação da biodiversidade.
  • COP29 (Baku, 2024) – O Baku Workplan (2025–2028) reforçou a integração de vozes indígenas e comunitárias, embora sem incluir representantes de comunidades locais no Grupo de Trabalho Facilitador (FWG) da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas (LCIPP).
  • SB62 (Bonn, 2025) – Pela primeira vez, representantes comunitários participaram de um grupo de discussão específico no âmbito do FWG, apresentando a Carta e Nota Técnica sobre o Reconhecimento Formal das Comunidades Locais, assinada por redes latino-americanas e organizações parceiras.

Carta de Bonn reforça demandas por reconhecimento

A Carta de Bonn — enviada em junho de 2025 à LCIPP e à Secretaria da UNFCCC — reafirma a urgência do reconhecimento formal das Comunidades Locais (CLs) no regime climático global. O documento, assinado por redes e organizações como ISPN, Rede Cerrado, MIQCB, CNS, CNPCT, AMPB, APIB, Utz Che’, Red MOCAF, OPAN, IEB, Terra de Direitos e outras, cobra ações concretas para assegurar equidade, legitimidade e participação efetiva.

“Do coração do Cerrado, brota a nossa incidência como ato de resistência, esperança e reparação histórica. Somos herdeiros de comunidades que, há séculos, cuidam da terra, das águas e dos ventos, garantindo o equilíbrio que sustenta a vida. Ao afirmar nossa presença na agenda climática, lembramos ao mundo que não há justiça climática sem justiça territorial, nem futuro possível sem o reconhecimento e a reparação daqueles que mantêm viva a relação sagrada com a terra”, declara o geraizeiro e presidente do Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT), Samuel Caetano.

As signatárias destacam que as comunidades locais enfrentam impactos desproporcionais das mudanças climáticas e, ao mesmo tempo, são agentes-chave de resiliência e adaptação. A carta pede o cumprimento das decisões já adotadas pela COP, o reconhecimento formal das CLs como atores constituintes da UNFCCC, sua inclusão no Plano de Trabalho de Baku da LCIPP, a criação de um Fundo de Participação de Comunidades Locais e o fortalecimento de mecanismos de tradução intercultural e diálogo inclusivo.

“Ainda estamos aqui, seguiremos aqui e precisamos ser ouvidos”, diz o documento.

Leia aqui a carta completa.

Caucus Global de Comunidades Locais: um novo marco político

Inspirado em experiências exitosas como o Indigenous Peoples Forum on Climate Change (IIPFCC), está em formação o Caucus Global de Comunidades Locais (Local Communities Global Caucus – LCGC), que será oficialmente lançado durante a COP30, em Belém (PA).

O Caucus pretende consolidar um espaço político permanente, autônomo e plural para a articulação das comunidades locais em nível global, buscando reconhecimento formal como uma nova constituency da UNFCCC.

“A criação de um Caucus de Comunidades Locais é um passo decisivo para consolidar sua voz política na UNFCCC — um chamado à filantropia, à sociedade civil e aos países para unir esforços e garantir apoio técnico e financeiro que fortaleça sua presença e reconhecimento como constituency legítima do regime climático global”, destaca o coordenador de Advocacy e Políticas Públicas do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), Guilherme Eidt.

Entre os objetivos do Caucus Global de Comunidades Locais, estão:

  • Fortalecer a representação das comunidades locais nos órgãos da Convenção (LCIPP, SBSTA, SBI, Artigo 6, Adaptação e Perdas e Danos);
  • Apoiar a revisão institucional da LCIPP, com inclusão de assentos comunitários;
  • Promover consultas regionais e intercâmbios entre América Latina, África e Ásia;
  • Garantir princípios de autoidentificação, legitimidade comunitária, paridade de gênero, rotatividade geográfica e justiça racial;
  • Propor um Fundo de Participação de Comunidades Locais com acesso direto e desburocratizado a recursos climáticos.

Governança climática com justiça e reparação

A criação do Caucus e o avanço do debate dentro da UNFCCC marcam um passo essencial rumo a uma governança climática mais justa, inclusiva e representativa.

“As comunidades locais não são apenas parceiras de implementação — são atores políticos que moldam as soluções climáticas”, destacou a apresentação feita no Global Grasslands & Savannahs Dialogue 2025.

Para o ISPN e as organizações parceiras, reconhecer povos afrodescendentes, quilombolas e comunidades locais como sujeitos políticos no regime climático global é uma condição de legitimidade, reparação e justiça climática — indispensável para enfrentar a crise do clima com equidade e eficácia.

Autoria: Assessoria de Comunicação do ISPN

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