Participantes da Audiência Pública em Balsas (MA). Foto: Cristiane Moraes/Acervo ISPN

Participantes da Audiência Pública em Balsas (MA). Foto: Cristiane Moraes/Acervo ISPN

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Vozes do Cerrado do Sul do Maranhão se reúnem em audiência pública para discutir proteção do bioma

A região está entre as que mais desmataram o Bioma Cerrado no Brasil - coração hídrico do país

Quase toda a viagem de carro pela BR 230, rumo ao Sul do Maranhão, nos revela um cenário difícil de ver. A perder de vista, terras sem verde, sem vida, com redemoinhos de areia. Nessa época do ano, nem a soja se faz presente. A terra ainda está sendo preparada para recebê-la. Uma visão muito parecida em toda a região do Matopiba que abrange os estados do Tocantins e partes do Maranhão, Piauí e Bahia. Região considerada “celeiro de alimentos”, onde ocorreu forte expansão agrícola a partir da segunda metade dos anos 1980, especialmente no cultivo de grãos. 

Mas, para as comunidades que vivem no Sul do estado, o acrônimo “MATOPIBA” tem outros significados. A monocultura da soja trouxe grandes áreas desmatadas, mananciais de água que desapareceram, erosão do solo, queimadas e conflitos de terra. Nos últimos 5 anos, municípios como Balsas e Alto Parnaíba estão nas listas dos maiores desmatadores do país. Segundo dados do Caderno Anuário de Conflitos da Comissão Pastoral da Terra de 2024, o Maranhão foi o estado mais afetado com conflitos agrários em 2023, com 363 ocorrências. Um aumento significativo em relação a anos anteriores, sendo as principais vítimas comunidades ameaçadas por grileiros e o agronegócio.

 “O Cerrado está sendo destruído pelo fogo. A gente tá sendo empurrado pelos outros.  Dizem que não somos donos da terra. E tão tirando a gente de lá a base de bala, de tiro. Tivemos que sair de lá pra não morrer,” diz a agricultora Ivonete Gomes da Silva.

Ela e o marido vivem hoje em um barraco construído fora da terra em que nasceram. O pedaço de chão em Gado Bravinho, em Balsas (MA), era terra de herança dos avós do marido, que nunca esqueceu os saberes deixados por sua ancestralidade. Quilombolas que desbravaram o Cerrado, viviam a fartura oferecida pela natureza, plantavam preservando os mananciais e construindo a comunidade, respeitando a interação com o bioma.

Dona Ivonete e o marido Raimundo de Assis, agricultores familiares de Gado Bravinho. Foto: Cristiane Moraes/Acervo ISPN

 “Toda a nossa existência é Gado Bravinho. O Incra adquiriu as terras, não resolveu os problemas com os grileiros, não fez reforma agrária. E aí grileiro veio pra cima de nós. Queimaram nossa casa e a roça de mandioca. Plantaram capim,” conta seu Raimundo de Assis Pereira.

Essas falas ecoaram na audiência pública realizada, no último dia 30 de outubro, na Câmara Municipal de Balsas com o tema “AS VOZES DO CERRADO: Pelo Direito de Existir, Resistir e Manter o Cerrado em Pé”. A audiência foi organizada pela Associação Camponesa (ACA), Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos de Balsas (CDVDH), Cooperativa Agroecológica pela Vida do Cerrado Sul Maranhense (COOPEVIDA), Associação das Comunidades Quilombolas de Macacos, Brejim e Curupá (ACQMBC) e Cáritas Diocesana de Balsas, em parceria com o Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), por meio do curso Cerrativismo – Mulheres das Águas. Organizações da sociedade civil com histórico de atuação na defesa dos direitos humanos e na proteção dos ecossistemas da região. Também apoiaram a iniciativa a Agência Estadual de Pesquisa e Extensão Rural (AGERP) e a Prefeitura de Balsas. Além da audiência foi realizada uma feira com produtos do Cerrado.

Feira com Produtos do Cerrado. Foto: Cristiane Moraes/Acervo ISPN

A ideia da realização da audiência pública é resultado de um trabalho prático da agricultora familiar Antônia Pereira de Sousa, participante do Curso de Cerrativismo – Mulheres das Águas, oferecido pelo Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN) com o apoio do Fundo de Parceria para Ecossistemas Críticos (CEPF) e do Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB). 

Audiência Pública na Câmara de Vereadores de Balsas. Foto: Cristiane Moraes/Acervo ISPN

O curso de três módulos aborda o ativismo das mulheres em defesa do Cerrado, usando como ferramenta a construção de Plano de Incidência Política. Como parte da formação, as alunas receberam um valor para ajudar a custear um trabalho prático, motivando a comunidade no engajamento político em defesa do Cerrado.

 “A partir do curso, passei a lidar melhor com o Cerrado. Eu compreendi porque o Cerrado é importante e vi que outras mulheres viviam os mesmos desafios. A Audiência foi um jeito de chamar a atenção da sociedade. E para mostrar que a agricultura familiar é viável porque garante e preserva o Cerrado em pé”, afirma Antônia.

Antônia Pereira. Participante do curso de formação Cerrativismo e idealizadora da Audiência Pública. Foto: Cristiane Moraes/Acervo ISPN

 Maria de Lourdes Lopes, da comunidade Brejão, no Alto Gerais de Balsas, define como o conhecimento sobre o bioma muda perspectivas e alimenta sonhos.

“Antes de eu estar no Cerrativismo, meu pensamento era pra baixo. Eu não tinha a visão que tenho hoje. Eu tenho hoje o papel de mobilizar minha comunidade e a comunidade vizinha. O futuro vai ser pocante [termo usado pelas participantes do curso para se referir a algo muito bom]”

 A audiência foi um exercício de espaço democrático para que as comunidades tradicionais apresentassem suas demandas e denúncias de violações às autoridades e sociedade civil, contribuindo para a proteção do território. 

“A partir do curso de formação Cerrativismo executado pelo ISPN, tivemos o desafio de articular os diferentes territórios e organizações para essa demanda que é proteger as comunidades do Cerrado. O nosso maior desafio agora é manter o que ainda está de pé,” diz Raimunda Francisca Paz, Presidente da Associação Camponês (ACA).

A importância do Cerrado e a crise climática

O Cerrado, considerado o berço das águas, é de fundamental importância para o Brasil guardando nascentes de importantes bacias hidrográficas como a Amazônica, São Francisco e Prata, alimentando mais de 40% da população do país e o Aquífero Guarani e Urucuia.  Berço de 5% de toda a biodiversidade do planeta, com uma imensa variedade de espécies de animais e plantas, muitas delas endêmicas, além de um papel crucial na mitigação das mudanças climáticas ao sequestrar carbono. A sua importância também se reflete na economia e na cultura, como fonte de alimentos, medicamentos e com o seu ecossistema conectado a outros biomas. Lugar de inúmeras comunidades que dependem do Cerrado em pé e de sua integridade ambiental.

Cerrado e a sobrevivência de seus mananciais de água. Foto: Fellipe Abreu/Acervo ISPN

O Cerrado, que regula o ciclo das chuvas e sustenta a vida em diferentes regiões e biomas do país, vem sofrendo com a perda de vegetação e, principalmente, sua água.      Pesquisadores apontam que a crescente destruição do Cerrado é motor para agravamento da crise climática que afeta não só o Brasil, mas todo o planeta. As consequências ainda parecem invisíveis para as políticas públicas e grandes fóruns de discussão climática como a COP30, que acontece em novembro em Belém, capital do Pará. A redução da capacidade do bioma de reter água e absorver carbono tem aumentado as áreas de seca, o calor, a propagação de incêndios e emissões de gases de efeito estufa. A perda da vegetação impacta o volume das chuvas e das águas dos rios. Uma ameaça cada vez mais real ao clima, à segurança hídrica, alimentar e energética.

Cerrado, Coração das Águas

Somam-se a esse movimento de luta pelo Cerrado em pé, inúmeras iniciativas. No último dia 11 de setembro, Dia Nacional do Cerrado, foi lançada a campanha “Cerrado, Coração das Águas” pelo Instituto Sociedade, População e Natureza ( ISPN), em parceria com O Instituto Cerrados, Rede Cerrado, WWF Brasil, Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) e a Funatura. Um esforço coletivo de sensibilizar a população para a importância do bioma, colocar o Cerrado como pauta importante na COP30, além de chamar a atenção para os números que refletem a urgência de políticas de proteção. Dados da página da campanha, mostram que o Cerrado é o 2º maior bioma do Brasil e da América do Sul; mais de 23% do Brasil é formado por Cerrado; mais da metade do Cerrado brasileiro já foi desmatado; em 2050 teremos menos de 35% das águas dos rios. Os estudos também mostram que o bioma é território de mais de 80 etnias indígenas. O Cerrado absorve hoje mais de 13 bilhões de toneladas de CO2/KM2. 

Área de Cerrado Desmatada. Foto: Fellipe Abreu/Acervo ISPN

Supressão de Vegetação Nativa ilegal

O custo social do desmatamento e da crescente fronteira agrícola tem sido muito alto para alimentar mercados chineses, europeus e norte-americanos, principais compradores dos grãos produzidos na região do Matopiba. Uma lógica que vem atropelando comunidades tradicionais indígenas e quilombolas que vivem no Cerrado. Mais de 93% por cento do desmatamento no coração hídrico do Brasil, em 2024, apresentava indícios de irregularidades, segundo dados do MapBiomas. Na audiência pública em Balsas, a Secretária Executiva da Iniciativa Tamo de Olho, Débora Lima, apresentou dados referentes a Autorizações de Supressão de Vegetação (SAVs) no Maranhão. Unidades de conservação na sua diversidade, áreas de proteção permanente, reservas legais e territórios que deveriam ser protegidos estão sendo “sacrificados”.

“Infelizmente, dentro das autorizações que o estado do Maranhão tem concedido nos anos de 2019 a 2024 a gente conseguiu encontrar mais de mil e cem autorizações sobrepostas a essas áreas protegidas, o que significa a perda de mais de 78 mil hectares de vegetação nativa no estado,” relata a pesquisadora.

Quilombo Macacos. Alto Parnaíba (MA). Foto: Cássio Bezerra/Acervo ISPN

Segundo os dados apresentados na audiência, se toda autorização concedida de maneira irregular fosse cancelada pelo Sistema de Concessão de Autorizações do Estado do Maranhão, cerca de 300 mil hectares que estão sendo perdidos pela destruição e pelo avanço do agronegócio no estado, estariam preservados.

“É lá no Cerrado que eu quebro meu coco, faço a minha roça, crio meus bichos. Se meu destino for pra cidade eu não sei o que fazer, como sobreviver. É a mesma coisa que pegar uma caça de lá do sertão e jogar na cidade. Só sei viver no meu lugar,” falou emocionada dona Ivonete Gomes, exercendo seu direito  de fala na  Câmara de Vereadores de Balsas.

Na audiência, os povos que vivem no Cerrado do Sul do Maranhão, a partir dos relatos de suas vivências nos territórios, deixaram ecoar para as instituições presentes que é  urgente fortalecer políticas públicas, fazer valer os instrumentos de fiscalização e o cumprimento das leis ambientais. E ainda, incluir o Cerrado nas metas de conservação em acordos climáticos nacionais e internacionais. São vozes de quem vive e sabe porque defende o Cerrado.

Autoria: Cristiane Moraes/Assessoria de Comunicação do ISPN

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