Indígena queimando roça e controlando o fogo com abafador de palha na TI Apinaye, bioma Cerrado. Foto: Peter Caton/Acervo ISPN

Indígena queimando roça e controlando o fogo com abafador de palha na TI Apinaye, bioma Cerrado. Foto: Peter Caton/Acervo ISPN

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Os desafios, oportunidades e adaptações necessárias para o uso tradicional do fogo

Como a valorização do uso cultural e ecológico das queimadas por comunidades indígenas, tradicionais e rurais contribui para a prevenção de incêndios e o manejo sustentável dos ecossistemas

Muitos povos e comunidades rurais fazem o uso tradicional do fogo para suas atividades produtivas, culturais e cotidianas em todo o Brasil. Entre as atividades em que o fogo é mais usado, podemos destacar as queimadas para: agricultura familiar; limpeza de áreas; redução de material combustível (vegetação seca) para proteção de áreas contra incêndios; caça de animais silvestres; rebrota de pastagens para a alimentação de gado e outros animais de criação; estímulo à floração e frutificação de plantas de interesse para alimentação, artesanato, construção, medicina e outros usos; celebrações, rituais e entretenimentos; e afastamento de insetos, pragas e outros animais indesejados.

Embora a maioria dessas queimas sejam tradicionalmente realizadas ao longo do período seco do ano, elas são controladas por pessoas responsáveis da comunidade ou por pequenos produtores. Essas pessoas geralmente escolhem dias e horários mais frios e úmidos, que facilitam o controle do fogo, e áreas rodeadas por barreiras naturais (rios, matas verdes e áreas alagadas) ou antrópicas (estradas, caminhos e aceiros) para evitar que o fogo escape. Existem povos indígenas que possuem pessoas especializadas no tema do uso do fogo para caçadas – no povo Xavante, por exemplo, são os chamados “donos do fogo”. Tendo esses cuidados, elas não correm o risco de queimar ou prejudicar seus sistemas produtivos, moradias e outras áreas de interesse econômico, social ou cultural.

Nos ecossistemas de cerrado e campo, as práticas tradicionais com o uso do fogo são mais comuns e áreas maiores costumam ser queimadas para o manejo dos territórios. Nas áreas de florestas, brejos e matas, o fogo é usado mais pontualmente, como no preparo de roças e coleta de mel. Isso porque, muitos povos indígenas e tradicionais, com seus conhecimentos ecológicos, sabem que esses ambientes são sensíveis ao fogo e que precisam protegê-los para continuarem usufruindo de seus recursos.

Ao longo de milhares de anos, o conhecimento ecológico do fogo, transmitido para novas gerações, se aprimorou e foi sendo adaptado de acordo com as necessidades socioambientais de cada período histórico. Assim, tecnologias e técnicas sociais foram desenvolvidas para atender as demandas alimentares, culturais e de proteção de diferentes povos e contextos em que vivem.

Por exemplo, a formação de mosaicos de áreas com diferentes históricos de queima e tipos de vegetação ajuda a proteger os territórios de incêndios, ao quebrar a continuidade do combustível formado pela vegetação seca e impedir a propagação do fogo nos períodos críticos. Ao mesmo tempo, ajuda a conservar plantas que precisam da abertura de clareiras para receberem luz do sol, e outras que são estimuladas a se reproduzirem após a passagem do fogo, fornecendo frutos que são fontes importantes de nutrientes. Esses frutos e a rebrota da vegetação alimenta vários animais silvestres que são atraídos para as áreas manejadas e, que também, servem de alimento para essas populações.

Técnicas e ferramentas complexas foram desenvolvidas por povos originários para manipular e controlar o comportamento do fogo sob condições meteorológicas (temperatura, umidade relativa do ar e vento) desfavoráveis à propagação do fogo, e em ambientes com vegetações mais ou menos inflamáveis. Para que os objetivos de manejo sejam atendidos, mesmo diante de mudanças climáticas, são usados comumente sistemas de planejamento com o uso de mapas e calendários coletivos, com base no ciclo da lua e da reprodução de algumas espécies, posição das estrelas, comportamento de animais e sensibilidades e desconfortos corporais, como dores nos ossos, dentes e articulações.

Com a nova Política Nacional do Manejo Integrado do Fogo (PNMIF), estas práticas culturais e conhecimentos ecológicos geracionais são respeitados e reconhecidos como parte essencial do manejo de paisagens. A PNMIF é uma iniciativa do governo brasileiro que reconhece e valoriza o uso tradicional do fogo por comunidades indígenas, tradicionais e rurais. Ela busca integrar esses saberes às ações de prevenção e combate a incêndios, promovendo o uso controlado do fogo para proteger e conservar ecossistemas e reduzir impactos ambientais. Sua regulamentação, iniciada em 2024, visa ampliar essas estratégias em todo o país, com apoio à capacitação comunitária e uso de tecnologias de monitoramento.

A partir do manejo integrado do fogo (MIF), entende-se que os serviços prestados pelos povos e comunidades indígenas, tradicionais e rurais são inúmeros e precisam ser valorizados, pois, sem suas ações, áreas muito maiores queimariam durante os incêndios e muitas áreas sensíveis continuariam degradadas.

Neste sentido, desde 2014, o conhecimento ecológico tradicional e as tecnologias sociais dessas populações estão sendo levantadas, registradas e, quando possível, incorporadas pelas instituições públicas na implementação de ações de prevenção e combate aos incêndios e uso do fogo controlado, em queimas prescritas e aceiros queimados. Os resultados promissores do MIF têm ampliado a adoção destas práticas para outros territórios e, ao mesmo tempo, convencido diferentes atores sociais de que a experiências desses povos é fundamental para reduzirmos as áreas queimadas por incêndios e os problemas associados a eles.

Mesmo diante dos progressos feitos com o MIF em áreas protegidas sob jurisdição de órgãos federais, as mudanças climáticas combinadas com os crimes ambientais têm tornado o manejo do fogo desafiador para as populações e comunidades rurais. A realidade na maioria dos territórios rurais é o aumento dos incêndios devastadores, especialmente no Cerrado, na Amazônia e no Pantanal. Esta situação tem ocorrido pois o MIF e suas ações ainda são pouco conhecidas e implementadas pelos estados, municípios, comunidades tradicionais e produtores rurais.

De modo geral, as populações indígenas, tradicionais e rurais estão sendo obrigadas a adaptarem suas práticas e técnicas com o uso do fogo e, em alguns locais, até a substituírem o uso do fogo. Os períodos, horários do dia e locais das queimas são os fatores que mais estão sendo flexibilizados para favorecer o controle do fogo. Para isso, as comunidades estão tendo que mudar calendários e locais de sistemas produtivos e eventos culturais e sociais, atrasando ou adiantando algumas práticas. A confecção dos aceiros no entorno das áreas queimadas também se tornou uma prática imprescindível.

Outra ação também tem sido na produção de materiais didáticos e pedagógicos, elaboradas nas línguas indígenas. Além desses materiais valorizarem e fortalecerem os saberes tradicionais para as novas gerações, eles levantam novas necessidades técnicas diante dos desafios enfrentados pelos povos indígenas diante das mudanças climáticas e transformações na paisagem, especialmente nos territórios vizinhos as Terras Indígenas (aumento das áreas de vegetação nativa convertidas para monocultura ou pastagens). Muitos desses materiais também trazem indicações sobre a gestão de resíduos sólidos advindos da aquisição de mercadorias no comércio local, como as embalagens de plástico, entre outras.

Ao mesmo tempo, muitas comunidades rurais têm adotado tecnologias de monitoramento, como o uso de sistemas online de alerta, drones e rondas, para tentar responder mais rapidamente aos focos de incêndios e dificultar sua propagação para outras áreas. A formação e capacitação de brigadas voluntárias, comunitárias e privadas é outra estratégia que tem ganhado força nos mais diversos territórios e mostrado resultados muito positivos.

*Lívia Moura é geógrafa e doutora em ecologia e é Assessora Técnica do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN). Eduardo Barnes é Gerente de Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais Paisagem Icônica Cerrado na The Nature Conservancy (TNC).

Artigo publicado originalmente em Um Só Planeta.

Autoria: Lívia Moura e Eduardo Barnes

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