O esforço para regenerar o Cerrado começa na base da cadeia produtiva: a coleta de sementes nativas. — Foto: Vitor Saraiva

O esforço para regenerar o Cerrado começa na base da cadeia produtiva: a coleta de sementes nativas. — Foto: Vitor Saraiva

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Cerrado em foco: bioma estratégico para água, clima e produção pede protagonismo na COP30

No Dia do Cerrado, especialistas, coletores de sementes e organizações defendem a restauração e a bioeconomia como caminhos para garantir água, clima estável e produção de alimentos

A imensidão do Cerrado costuma despertar comparações com a savana africana. E não é à toa que o bioma é classificado como uma savana tropical, inclusive, a maior da América do Sul. Sua paisagem combina árvores de troncos retorcidos, campos abertos e áreas úmidas.

Com cerca de 200 milhões de hectares, o Cerrado se espalha por 11 estados e o Distrito Federal e é considerado o berço das águas do Brasil: concentra as nascentes de oito das 12 grandes bacias hidrográficas do país, garantindo água para consumo humano, irrigação e geração de energia.

Mas, esse papel estratégico está sob ameaça. Desde 1985, o bioma perdeu mais de 38 milhões de hectares de vegetação nativa, segundo o MapBiomas e o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) — uma área maior que o estado de Goiás. Hoje, pouco mais da metade da cobertura original permanece de pé, colocando em risco a biodiversidade, a regulação do clima e a segurança hídrica nacional.

No Dia Nacional do Cerrado, celebrado nesta quinta-feira (11), o alerta se renova. A degradação ameaça não só espécies emblemáticas e paisagens únicas, mas também a produção de alimentos e o abastecimento de água, por exemplo. E assim, as particularidades do Cerrado precisam ser temas de debate.

Cerrado: experiências bem-sucedidas a favor da biodiversidade — Foto: Vitor Saraiva

Produzir sem desmatar

O Cerrado segue como uma das principais fronteiras de expansão agropecuária do país, e o Código Florestal permite a supressão de até 80% da vegetação nativa em propriedades privadas, o que torna o desmatamento legal um dos maiores vetores de perda de habitat. Especialistas lembram, porém, que destruir o bioma não é sinônimo de desenvolvimento. E pesquisas indicam que o Brasil tem milhões de hectares de áreas degradadas aptas para restauração, onde é possível aumentar a produção sem derrubar novas áreas.

Nesse cenário, a Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura apresentou ao Ministério do Meio Ambiente (MMA), ao Ibama e ao Serviço Florestal Brasileiro o documento Brasil Sem Desmatamento, que propõe medidas para zerar o desmatamento ilegal e desestimular o legal. No Cerrado, o desafio é ainda maior — e exige novos instrumentos de governança.

Colíder da Força-Tarefa de Combate ao Desmatamento da Coalizão e diretora de Ciência do IPAM, Ane Alencar explica que a maior parte da vegetação nativa remanescente do Cerrado está dentro de imóveis rurais de uso privado. “O Código Florestal é mais permissivo para o Cerrado. E o primeiro passo é entender o que é legal e o que é ilegal, o que exige licenciamento ambiental claro, acessível e conectado a sistemas de monitoramento”, afirma.

Ela ressalta que também é necessário avançar na regularização fundiária. “Só com esse diagnóstico é possível cobrar responsabilidade de quem está desmatando. Precisamos de incentivos de mercado e de políticas públicas para intensificar o uso das áreas já desmatadas, além dos acordos com empresas que só comprem produtos em áreas livres de desmatamento e de mecanismos, como o pagamento por serviços ambientais, para valorizar o Cerrado em pé”, complementa.

Ane Alencar avalia questões urgentes do bioma — Foto: Divulgação Ipam

“Não é exatamente plantar árvores”

Além de medidas de governança, Ane reforça que o Cerrado pode ser uma das vitrines da transição para uma economia de baixo carbono que o Brasil pretende apresentar na COP30, em Belém. “O Cerrado é a savana mais biodiversa do mundo e concentra espécies que só existem nesse bioma. Isso dá a ele um potencial enorme para a bioeconomia, para o turismo e para o desenvolvimento de cadeias produtivas sustentáveis”, explica.

Mas ela alerta que restaurar o Cerrado exige conhecimento científico e planejamento. “Não é simplesmente plantar árvores. Muitas fitofisionomias do Cerrado não comportam esse tipo de intervenção. É preciso pensar em regimes de fogo adequados, remoção de espécies invasoras e incentivo à ciência para entender como recuperar cada paisagem do bioma”.

Sementes que restauram o futuro

O fato é que a regeneração do Cerrado passa por quem vive nele. E há projetos bem-sucedidos que, não concidentemente, já geram resultados – dados do Deter apontam para uma queda de 20,8% no desmatamento do Cerrado entre agosto de 2024 e julho de 2025.

Em Alto Paraíso (GO), a Associação Cerrado de Pé, fundada por Claudomiro de Almeida Cortes, reúne mais de 160 famílias de agricultores, assentados e quilombolas para coletar sementes de gramíneas, arbustos e árvores nativas, que depois são usadas em projetos de restauração ecológica. Essa cadeia de sementes garante renda para comunidades que antes viam o Cerrado como obstáculo ao plantio e hoje se tornaram guardiãs do bioma.

Claudomiro, da Cerrado de Pé. — Foto: Vitor Saraiva

“A questão maior é convencer o Estado, as empresas e os proprietários da importância que é o Cerrado de pé. O aquecimento global cada ano está aumentando e o único meio de diminuir isso é plantar, restaurar. O desafio é manter as comunidades na coleta de sementes, com geração de renda e dignidade”, conta Claudomiro.

Na etapa seguinte, entra em cena a Semeia Cerrado, liderada por Alba Cordeiro, que transforma essas sementes em áreas restauradas usando a técnica de muvuca de sementes — um método que mistura sementes de dezenas de espécies nativas para recuperar áreas de forma mais eficiente e barata do que o plantio de mudas. A organização já ajudou a restaurar mais de 900 hectares de Cerrado.

“A restauração cria um escudo verde de produtividade dentro da fazenda. Segura água no solo, protege nascentes, atrai polinizadores e diminui perdas em períodos de seca. Também melhora o acesso a crédito rural verde e abre portas para o mercado de carbono. É um jeito de aumentar a segurança produtiva hoje e preparar a fazenda para novas oportunidades de mercado amanhã”, explica Alba.

Cerrado na pauta global

Em Brasília, o Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN) lançou a série documental Cerrado, Coração das Águas para marcar o Dia Nacional do Cerrado e pressionar por mais atenção ao bioma na agenda climática. Os filmes mostram como o Cerrado conecta os principais rios brasileiros e sustenta modos de vida tradicionais.

Coordenadora do Programa Cerrado no ISPN, Isabel Figueiredo resume a urgência. “Nosso maior desafio é falar do Cerrado em uma COP que tem sido chamada de ‘a COP da Amazônia’. Mas é exatamente isso que queremos colocar em pauta: sem o Cerrado não há Amazônia, não há segurança hídrica nem energética no Brasil. Se o país quer realmente cumprir suas metas de redução de emissões, precisa incluir o Cerrado nesse debate e garantir que ele seja protagonista nas negociações”, afirma.

Isabel Figueiredo quer o Cerrado também como protagonista da COP — Foto: Fernando Tatagiba

A campanha segue até novembro, quando o Brasil sediará a COP30. O objetivo é dar visibilidade ao Cerrado em debates internacionais de clima e justiça socioambiental, incluindo o bioma como parte essencial da solução para o aquecimento global. “Buscamos mostrar que a importância do Cerrado para a agenda climática cresce a cada ano. Enquanto o desmatamento da Amazônia começa a ser controlado, o desmatamento no Cerrado não apresenta a mesma redução. Isso faz com que a contribuição do bioma para as emissões de gases de efeito estufa aumente proporcionalmente. Por isso, se o Brasil quer realmente cumprir suas metas de redução de emissões, é fundamental incluir o Cerrado nesse debate e assegurar que ele também seja protagonista nas negociações da COP”, ressalta Isabel.

Fonte: Um Só Planeta

Autoria: Nilson Cortinhas / Um só planeta

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