Manejo Integrado do Fogo é uma metodologia que envolve, além da gestão do fogo, educação ambiental e recuperação de áreas degradadas

Manejo Integrado do Fogo é uma metodologia que envolve, além da gestão do fogo, educação ambiental e recuperação de áreas degradadas

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Como o fogo pode ajudar a conservar o meio ambiente

Política Nacional do Manejo Integrado do Fogo é tema do terceiro episódio do ISPN Comenta, com a geógrafa e assessora técnica Lívia Carvalho 

Parece contraditório imaginar que o fogo – aquele que consome vários hectares de Cerrado, Pantanal e Amazônia e outros biomas – possa ser um instrumento de conservação. Mas essa é uma das ações que o Manejo Integrado do Fogo (MIF) propõe: uma maneira técnica e científica de gerir o fogo, que o transforma em aliado – e que tem origem em conhecimentos tradicionais e indígenas.

A relação entre o ser humano e o controle do fogo é ancestral. Como já discutido em artigo no site do ISPN, comunidades tradicionais e indígenas há muito dominam esse conhecimento, usando o fogo de forma estratégica para prevenir que incêndios atinjam áreas maiores. Se “as águas de março fecham o verão”, o que vem pela frente é um período mais seco, onde a vegetação seca acumulada pode ser combustível para chamas descontroladas.

A diferença está no manejo. Enquanto um incêndio desordenado consome tudo em seu caminho, o fogo aplicado de forma planejada reduz a biomassa seca, criando barreiras naturais contra propagações desenfreadas. É como domar uma força selvagem e usá-la a nosso favor.

Fogo aplicado de forma planejada reduz a biomassa seca e cria barreiras naturais contra incêndios desenfreados (Foto: Leonardo Milano/Reprodução)

Em julho de 2024, esse conhecimento ganhou respaldo legal com a aprovação da Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo (PNMIF), que estabelece diretrizes para a implementação e articulação do MIF por diferentes instituições e pessoas interessadas. A política busca reduzir áreas queimadas irregularmente por meio de técnicas sustentáveis, muitas delas inspiradas no saber tradicional de povos originários.

Mas o MIF vai além do fogo. Ele engloba atividades de educação ambiental e diálogo com comunidades, recuperação de áreas degradadas e formações técnicas e treinamentos de brigadistas, garantindo que o manejo seja feito de forma integrada e consciente.

Quem explica melhor esse conceito é Lívia Carvalho Moura, assessora técnica do ISPN, geógrafa e doutora em Ecologia pela UnB, no terceiro episódio do ISPN Comenta – um programa que discute pesquisas e temas urgentes para o equilíbrio ambiental e climático. 

Assista ao vídeo completo ou leia a entrevista na íntegra abaixo.

O que muda com a aprovação da PNMIF, sobretudo para as propriedades privadas?

Antes da aprovação da política, o MIF era uma metodologia que estava sendo aplicada em algumas áreas protegidas. Isso envolvia algumas Unidades de Conservação (UCs) federais, poucas estaduais e algumas Terras Indígenas. Agora com a Política aprovada, a metodologia pode ser expandida para todo e qualquer território dentro do Brasil. 

Produtores rurais, técnicos, gestores de UCs estaduais, municipais, podem aplicar essa metodologia também com a aprovação dessa política. Em relação às áreas privadas, com a política, é possível implementar várias atividades que têm no MIF. Com os devidos instrumentos e autorizações, os proprietários e produtores rurais vão poder aplicar essa metodologia também. 

Quem pode fazer o MIF e como começar?

Todo mundo pode aplicar o MIF, desde que tenha as informações necessárias, esteja ciente das atividades previstas, e desde que as atividades estejam autorizadas. Existem algumas atividades como implementação de queima prescrita, ou das queimas controladas, que vão necessitar de autorização prévia dos órgãos responsáveis. Mas outras atividades como por exemplo a recuperação de áreas degradadas, ou o trabalho com educação ambiental e sensibilização das comunidades do entorno, pode ser feito por vários profissionais, pelas comunidades em si e/ou parcerias com as escolas, com as universidades. Tudo isso pode ser aplicado desde que todo mundo esteja alinhado, ciente do trabalho a ser feito, que corresponda às atividades previstas no MIF. 

É importante destacar que o MIF não é sinônimo de queima prescrita ou queima controlada. O MIF comporta várias atividades. São atividades do MIF, o combate aos incêndios e a parte preventiva, como queima prescrita e controlada, confecção de aceiros. Além disso, tem o trabalho com educação ambiental que envolve sensibilização da comunidade em torno do uso racional, consciente e controlado do fogo. 

Também o MIF envolve a recuperação de áreas degradadas. Quando tem uma área que foi degradada por um incêndio, você pode e deve recuperar essa área, porque essa área recuperada pode ser usada para frear novos incêndios, ela pode ser muito importante para a dinâmica ecológica daquele local. A recuperação compõe a parte ecológica do MIF, assim como o entendimento sobre as necessidades das comunidades locais, tradicionais e povos indígenas. Tudo isso está dentro e deve ser previsto no MIF. 

Como a recuperação de áreas degradadas pode auxiliar na prevenção de incêndios?

Quando você tem uma área degradada, a possibilidade de espécies exóticas que não fazem parte daquele sistema, como braquiária, andropogon, se instalarem é muito comum. Quando essas espécies se instalam, elas propiciam a passagem do fogo. São plantas inflamáveis, elas servem como combustível pro fogo e aumentam as chamas. O fogo, a intensidade do fogo, a altura das chamas, a velocidade de propagação costuma ser mais alta com sua presença. Se você recupera esses ecossistemas, você muda o tipo de combustível para que seja menos inflamável. Ainda podendo ser inflamável, mas não tanto quanto quando se tem as espécies exóticas, e você tem uma redução da intensidade do fogo, uma possibilidade a mais de combater o fogo caso aconteça um incêndio. 

Dependendo do ecossistema, o tipo de vegetação que vai se recuperar, não necessariamente é composto só de  árvores. No caso de matas ciliares, mata galeria, se recuperar com espécies arbóreas e mais úmidas, que também ajudam a frear esse fogo, se vier um incêndio, esse fogo vai ficar menos intenso porque você tem uma vegetação mais verde e mais úmida naquele local. 

E mesmo quando o ecossistema é campestres, se recupera com a vegetação nativa que são plantas rasteiras de  capim, mesmo sendo uma vegetação favorável a passagem do fogo, muito provavelmente vão ser menos inflamáveis que as espécies exóticas. 

O MIF pode ser aplicado por qualquer pessoa, desde que se tenha as autorizações necessárias (Foto: Leonardo Milano/Reprodução)

Qual a diferença entre queima prescrita e queima controlada?

A queima prescrita é usada com a finalidade de manejo e conservação de ecossistemas naturais. Pode ser usada por gestores, pesquisadores e pessoas interessadas em manter a paisagem, manter um ecossistema. O Cerrado por exemplo é um bioma que tem vários ecossistemas, entre eles as áreas campestres, que geralmente são adaptadas ao fogo. Para manter essas áreas, os gestores de UCs, por exemplo, vão fazer todo um planejamento, um estudo daquela área com mapas. Este levantamento vai ajudar a entender onde estão as barreiras naturais que ajudariam a frear o fogo, áreas que precisam ser queimadas para serem mantidas, onde estão os acúmulos de combustível, que no caso é a vegetação seca, e que podem ser perigosas nos períodos críticos da seca. Então, eles vão estudar o melhor momento para fazer essa queima e até onde essa queima pode ir, tem todo um planejamento necessário que envolve a queima prescrita. 

Já a queima controlada, envolve uma finalidade produtiva. Geralmente quem vai fazer essa queima são os comunitários, os proprietários, produtores rurais. Quem tem interesse geralmente nas queimas controladas é para uma finalidade mais agrícola de limpeza, de áreas e terrenos, rebrota de capim para alimentar o gado. São variadas as finalidades para queimas controladas, mas são realizadas também de maneira controlada, em áreas menores, no geral, por uma finalidade relacionada à produção rural, ou à limpeza e proteção de áreas. 

Qual a diferença entre Plano de Manejo do Fogo, Plano Operativo e Plano de Queima? 

Esses planos são todos instrumentos do Manejo Integrado do Fogo (MIF), o Plano de Manejo Integrado do Fogo (PMIF) envolve um planejamento e é instrumento de mais longo prazo. em geral, se faz um planejamento de MIF, que vai subsidiar os outros tipos de planejamento de curto prazo, e ele funciona em geral por cinco anos mais ou menos. É um plano que conta com informações tanto sobre o local em que está fazendo o manejo, como informações da vizinhança. Nele devem haver  informações ecológicas, sobre a dinâmica ecológica, tipo de ecossistema, tipo de vegetação, como essa vegetação se comporta com o fogo, se ela precisa ou não do fogo, se ela precisa ser protegida do fogo, se a área precisa ser recuperada ou não, em quanto tempo, que tipo de espécie você precisa para recuperar aquela área. E também devem haver informações sociais, culturais, e econômicas. Tudo que está sendo feito pelas comunidades e populações locais é importante ser mapeado dentro do PMIF, para você fazer um planejamento realista e de acordo com as necessidades locais. Para além disso, as informações de prevenção e combate, que fazem parte do manejo do fogo em si, também devem constar no PMIF. 

Por ser um instrumento de longo prazo, ele não vai trazer informações do que vai ser implementado ano a ano, é um documento mais genérico que você busca informações para rechear o planejamento anual. Para esse planejamento anual, o instrumento mais adequado e indicado são os planos operativos, que dizem respeito àquele ano o que será feito naquela área ou território de interesse. Já os Planos de Queima, envolvem cada queima prescrita ou queima controlada que for fazer na área. Cada queima vai ter seu próprio plano, porque se trata de um instrumento exclusivo e único para o momento da queima. Depende das condições meteorológicas (direção do vento, temperatura, umidade relativa do ar), tipo de área queimada, quem vai participar daquela ação, tudo isso deve constar no plano de queima. 

Queima prescrita e queima planejada têm diferentes finalidades: a primeira tem foco em conservação e a segunda em produção (Foto: Fernando Tatagiba/ICMBio)

O MIF pode ser aplicado em qualquer bioma?

O MIF pode ser aplicado em qualquer bioma. Lembrando que o MIF também é combate, sensibilização e educação ambiental. Esse tipo de atividade é mais do que bem-vindo e necessário em todos os biomas. O que a gente precisa entender é que em cada bioma existem vários ecossistemas. Dentro de um mesmo bioma existem vários ecossistemas que devem ser manejados e planejados de maneira diferente. Por exemplo, na Amazônia, existem os campos amazônicos ou as savanas amazônicas que algumas espécies são adaptadas ao fogo. E quando pensamos numa das atividades do MIF que é a implementação das queimas prescritas, elas podem ser aplicadas nesses ecossistemas dentro do bioma amazônico. Não quer dizer que as florestas e todo ecossistema deva ser manejado da mesma forma com o uso do fogo. Outro exemplo seria o Cerrado, em que ocorrem ecossistemas mais sensíveis ao fogo. Nem todos os ecossistemas do Cerrado são adaptados ao fogo. Aqueles que são mais sensíveis, como matas ciliares ou matas secas, não podem ser manejados com as queimas prescritas. Dependendo do ecossistema, é necessário estudar quais as ações e qual planejamento é necessário para que aquele ambiente seja conservado. 

De que forma as pessoas podem contribuir com o MIF?

Para que o MIF seja bem sucedido, é importante que as comunidades como um todo estejam cientes, participem e se envolvam com as ações e as diversas atividades que comportam o MIF. Isso com certeza vai fazer com que a implementação do MIF seja mais exitosa. Mas para além das áreas rurais e áreas de territórios e comunidades, as pessoas que estão em centros urbanos também podem ajudar na parte de monitoramento dos focos de calor e sensibilização sobre o fogo. Porque quando os focos ocorrem, é muito rápida a propagação do fogo. Os órgãos de controle ou os brigadistas tem muito pouco tempo para chegar até esse lugar e conseguir combater com eficiência aquele incêndio. Por isso quanto mais rápido e mais ágil ocorrer o sistema de alerta e aviso, grupos de whatsapp e trocas de informação, mais possível é de se combater os incêndios e, muito mais provável, que se consiga combatê-lios.  por isso é muito importante contar com todos que estão não só nas áreas rurais mas nos centros urbanos para essa parte de monitoramento e sensibilização da população. 

Quem são os principais responsáveis atualmente pela implementação do MIF? 

Hoje os principais responsáveis pela implementação do MIF são gestores, analistas ambientais, brigadistas, que trabalham em UCs e Terras Indígenas. Por que hoje a maioria das áreas que estão sendo implementadas o MIF são essas, e as brigadas são chaves e estratégicas para essa implementação. Com a aprovação da política, se pretende que outras pessoas possam ajudar e contribuem com essas atividades, porque são muitas atividades, então tem trabalho pra muita gente. Os brigadistas não necessariamente são contratados pelo Governo,os brigadistas florestais. Temos hoje os voluntários e os comunitários, que fazem parte de uma comunidade específica que cuidam de um território que é do seu interesse ou onde têm suas famílias e seus sistemas produtivos. Esses atores são importantíssimos para que o mif consiga se expandir e ser ampliado para as áreas privadas e para os territórios comunitários.  

Texto por  Camila Araujo / Assessoria de Comunicação do ISPN.

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