Comemoração de indígenas e ativistas com a criação do órgão subsidiário permanente do Artigo 8(j), da CDB. Foto: UN Biodiversity

Comemoração de indígenas e ativistas com a criação do órgão subsidiário permanente do Artigo 8(j), da CDB. Foto: UN Biodiversity

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COP 16 conclui com avanços tímidos para financiamento da biodiversidade e fortalece a relação com a agenda climática da COP 29

Os resultados da COP16 devem influenciar as discussões climáticas da COP 29, reforçando a necessidade de uma abordagem integrada entre biodiversidade e clima.

 

A 16ª Conferência das Nações Unidas sobre a Biodiversidade (COP 16), realizada em Cali, Colômbia, encerrou suas atividades em 1º de novembro [2024], com resultados limitados e desafios ainda sem soluções claras, especialmente no que diz respeito ao financiamento para ações de conservação da biodiversidade. O evento trouxe avanços pontuais para povos indígenas, comunidades afrodescendentes e grupos tradicionais, fortalecendo sua participação na Convenção da Diversidade Biológica (CDB). Contudo, a falta de recursos dedicados ameaça a implementação efetiva dos compromissos assumidos. 

Alinhado à premissa do protagonismo dos povos indígenas, povos e comunidades tradicionais e agricultores familiares (PIPCTAFs), o Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN) esteve presente em Cali com uma delegação de oito membros, ao lado de parceiros PIPCTAFs e organizações da sociedade civil. O Instituto acredita que o engajamento ativo dos povos é fundamental para que acordos globais sejam construídos conforme as múltiplas realidades regionais e promovam soluções alinhadas com as necessidades e perspectivas locais. Em vista disso, o ISPN destaca alguns dos principais avanços e desafios trazidos pela COP16 e como esses pontos devem reverberar nas próximas conferências climáticas: a COP29 em Baku e a COP 30 no Brasil, em 2025.

 

Conquistas e limites

Reunião do alto segmento das partes, presidido pela ministra do meio ambiente da Colômbia e presidente da COP16, Suzana Muhamad. Foto: UN Biodiversity

 

Diferentemente da COP do Clima, que ocorre anualmente, a COP da Biodiversidade é realizada a cada dois anos. Foi em 2022, na COP em Montreal, que se estabeleceu o Marco Global da Biodiversidade Kunming-Montreal, acordo histórico que define 23 metas para a conservação e recuperação de ecossistemas no mundo. A COP 16, realizada há duas semanas em Cali, portanto, teve como foco discutir a implementação do Marco, incluindo a ambiciosa meta de conservar e restaurar 30% dos ecossistemas globais até 2030. O evento reuniu mais de 20 mil participantes de 196 países, incluindo representantes governamentais, lideranças indígenas e afrodescendentes, organizações da sociedade civil e setor privado. Dentre os avanços desta edição destaca-se a aprovação de medidas que ampliam a participação de comunidades tradicionais e indígenas nas decisões de conservação. Veja mais detalhes a seguir:

  • Avanços institucionais: o Artigo 8(j) da CDB e o Fundo Cali

Do ponto de vista institucional, a COP16 consolidou o Grupo de Trabalho do Artigo 8(j) como um Órgão Subsidiário Permanente da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), assegurando a participação formal e contínua de povos indígenas e comunidades locais nas decisões globais sobre biodiversidade. Essa conquista, originalmente proposta pela Bolívia em 2016, enfrentou anos de intensas negociações até ser oficializada em 2024. Danilo Guajajara, coordenador da Coordenação das Organizações e Articulações dos Povos Indígenas do Maranhão, que participou da conferência, destacou a importância desse avanço como um reconhecimento do papel dos povos indígenas e outras comunidades tradicionais nos espaços de decisão.

“Esse reconhecimento é um grande passo para que as vozes de quem está na linha de frente da defesa da natureza possam influenciar decisões globais de proteção”, ressalta. 

Outro importante avanço foi a criação do Fundo Cali, um mecanismo para redistribuir de forma justa e equitativa os recursos financeiros gerados do uso da Digital Sequence Information (DSI) — informações genéticas digitalizadas de organismos vivos, como plantas e animais. Essas DSI são armazenadas em bancos de dados globais, mas frequentemente obtidas em países em desenvolvimento, ricos em biodiversidade, e utilizadas por empresas do Norte global em setores como o farmacêutico, cosmético e alimentício.

O Fundo Cali busca corrigir um desequilíbrio histórico, no qual o conhecimento tradicional e os recursos naturais de regiões biodiversas são explorados por grandes corporações, sem o devido retorno financeiro adequado às comunidades locais. Contudo, apesar de seu grande potencial, o fundo é de adesão voluntária, o que limita sua efetividade. A ausência de obrigatoriedade nas contribuições levanta questionamentos sobre a sustentabilidade e a real capacidade de promover uma repartição justa de benefícios.

Além disso, há incertezas quanto à sua governança e estrutura de operação. Não há clareza sobre como serão as instâncias decisórias e qual será o papel dos povos indígenas e das comunidades locais na estrutura de governança. Outras lacunas incluem a falta de mecanismos de fiscalização que exijam comprovação por parte das empresas sobre o uso de dados genéticos, e assim se isentam de contribuir com o fundo. 

  • Afrodescendentes na CDB
Celebração de ativistas, com a inclusão dos afrodescendentes no Artigo 8(j) da CDB. Foto: UN Biodiversity

A COP16 trouxe outro avanço importante ao reconhecer formalmente as contribuições das comunidades afrodescendentes para a conservação da biodiversidade. Em um movimento de ampliação das narrativas de preservação, a conferência incentivou os países a valorizar o conhecimento tradicional e a relação histórica dessas comunidades com a terra, recomendando a inclusão de suas práticas nos relatórios oficiais de biodiversidade. Esse reconhecimento destaca a importância da diversidade cultural na gestão sustentável de ecossistemas e fortalece a integração das vozes afrodescendentes nas estratégias globais de conservação.

“Foram necessários mais de 30 anos para reconhecer a necessidade da presença dos afrodescendentes na estratégia de conservação da biodiversidade”, afirmou Francia Márquez, primeira vice-presidente negra da Colômbia, durante a cerimônia de abertura do Fórum Internacional Afrodescendente, realizado na COP16.

Jhonny Martins, da Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), celebrou o avanço:

“Esse é um passo rumo à reparação histórica dos povos afrodescendentes, que enfrentaram séculos de escravização. Hoje, não queremos mais que discussões sobre nossos territórios sejam feitas sem a nossa participação”, declarou.

 

  • Protagonismo indígena e das comunidades locais e a coalizão G9 da Amazônia
Representantes indígenas na maloca da OPIAC, na Zona Verde da COP16 em Cali. Foto: UN Biodiversity

A COP16, foi chamada de “COP do Povo”, pelo presidente da Colômbia, Gustavo Petro, por ter destacado o protagonismo dos povos indígenas, comunidades tradicionais, campesinos e afrodescendentes. Um dos pontos centrais da agenda indígena foi o lançamento da coalizão internacional “G9 da Amazônia Indígena”, que reúne organizações indígenas de nove países amazônicos, atuando como uma força política e técnica. Na ocasião, líderes da coalizão pediram o fim dos combustíveis fósseis e da exploração desses recursos em territórios amazônicos. Toya Manchineri, coordenador da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), declarou:

“enquanto os governos seguem propondo metas insuficientes e financiamentos vazios, queremos anunciar que, a partir de agora, só haverá paz com a natureza se declararmos abertamente a guerra contra os combustíveis fósseis e qualquer outro projeto predatório que ameace a vida no planeta”.

  • Educação e conscientização pública sobre biodiversidade

Durante a COP 16, houve ainda um esforço coordenado para alinhar a comunicação e a educação sobre a biodiversidade com o Marco Global Kunming-Montreal. Com o apoio da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e outras instituições, foi proposta a criação de um plano de ação global para incluir a educação em biodiversidade nas políticas públicas e sociais dos países membros da CDB. Esse plano busca fortalecer a conscientização coletiva e engajar a sociedade na conservação, abrangendo tanto a educação formal quanto a informal e promovendo ações de comunicação adaptadas a diferentes contextos culturais e socioeconômicos.

 

Desafios pendentes: Financiamentos, Terras Indígenas e Estratégias e Planos de Ação Nacionais da Biodiversidade

Ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara; Ministra do Meio Ambiente e do Combate às Mudanças Climáticas, Marina Silva; e a diretora de meio ambiente do Ministério de Relações Exteriores, Maria Angélica Ikeda. Foto: Felipe Werneck/MMA

Apesar dos avanços, a COP 16 deixou em aberto questões essenciais. A ausência de um consenso para o financiamento robusto para o Fundo Global de Biodiversidade continua a ser um entrave. Embora o fundo tenha uma meta de 20 bilhões até 2025, até o momento apenas 500 milhões foram arrecadados, com países em desenvolvimento exigindo maior participação nas decisões sobre o fundo, que é gerido pelo Global Environment Facility (GEF). Esses países argumentam que o modelo atual privilegia interesses de nações doadoras, como os Estados Unidos, que não são signatários da CDB.

Enquanto esse financiamento robusto não vem, fundos independentes de base territorial, comunitária e filantrópica apresentaram suas experiências, destacando a urgência de expandir essas iniciativas que tanto contribuem para a conservação da biodiversidade.  Em um evento organizado pela Alianza Socioambiental Fondos del Sur, lideranças dessas iniciativas enfatizaram a importância desses fundos comunitários geridos localmente, que são capazes de responder às especificidades culturais e de governança dos territórios. Fabio Vaz, coordenador executivo do ISPN e representante do Fundo Ecos, destacou a relevância desses fundos na promoção da proteção ambiental em sintonia com as demandas locais. Também foi destacado o esforço para que os financiadores dessas iniciativas compreendam e respeitem as especificidades e os modelos de gestão próprios dos territórios, buscando superar burocracias que muitas vezes desconsideram essas realidades.

  • Estratégias e Planos de Ação Nacionais da Biodiversidade (EPANBs)

Apesar da submissão de metas de biodiversidade atualizadas por 119 países ter relevância, apenas 44 apresentaram suas Estratégias e Planos de Ação Nacionais de Biodiversidade (EPANBS), dentro do cronograma definido pelo Secretariado da CDB. E a ausência de uma definição e urgência para o atendimento desse compromisso pelas partes é preocupante. 

O Brasil não apresentou sua EPANB na COP 16, principalmente devido a atrasos relacionados a mudanças administrativas e a necessidade de articulação interna complexa. Segundo representantes do Ministério do Meio Ambiente, o processo de construção do plano envolve extensa consulta com diferentes setores e a sociedade civil para criar metas que reflitam as necessidades diversas de um país mega diverso como o Brasil. Esses esforços foram dificultados, em parte, por mudanças na Comissão Nacional da Biodiversidade (Conabio) durante o governo anterior, que limitou a participação social no planejamento de políticas ambientais, tornando o processo de reestruturação mais lento e complexo.

 

A integração entre as agendas da biodiversidade e das mudanças climáticas

Representantes indígenas de diversas partes do mundo se encontram na Zona Verde da COP16 em Cali. Foto: UN Biodiversity

A criação das três COPs — de Biodiversidade, Clima e Desertificação — ocorreu na ECO-92, no Rio de Janeiro. Desde então, cada conferência avançou independentemente, embora suas pautas sejam interconectadas. Em Cali, pela primeira vez, destacou-se a necessidade de alinhar essas agendas, reconhecendo que tratar a biodiversidade e as mudanças climáticas de maneira integrada possibilita soluções sustentáveis e mais eficazes.

Para lideranças indígenas e representantes de comunidades tradicionais, como José Benício, da Apib, essa integração é urgente, pois ecossistemas saudáveis são fundamentais para mitigar os efeitos das mudanças climáticas.

“Nós, povos indígenas, não separamos essas pautas, o planeta é um só”, ressaltou.

Na COP 29, que se iniciou em 11 de novembro, em Baku, espera-se que essas questões ganhem destaque, mesmo que o foco principal esteja no cumprimento do Acordo de Paris — envolvendo metas de redução de emissões, financiamento climático, adaptação e transição energética. Cali reforçou a urgência dessa integração para uma estratégia adaptativa abrangente, pois ecossistemas saudáveis são essenciais no ciclo global do carbono e no enfrentamento das mudanças climáticas, além de fornecerem serviços ecossistêmicos cruciais ao bem-estar humano, com benefícios econômicos, sociais e culturais.

Espera-se que essa integração ganhe ainda mais força na COP 30, prevista para ocorrer no Brasil em 2025. Os povos indígenas do Brasil já se anteciparam e lançaram, em Cali, o manifesto “A resposta somos nós”, que exige ações concretas para enfrentar as crises climática e de biodiversidade. Entre as principais demandas estão a demarcação das terras indígenas como medida eficaz de mitigação climática e o financiamento direto para a proteção dos territórios e modos de vida sustentáveis. Além disso, os povos indígenas reivindicam a copresidência da COP 30, com o objetivo de garantir uma participação ativa e decisiva na luta pela preservação do planeta.

Para Guilherme Eidt, coordenador de Políticas e Advocacy do ISPN, a conexão entre os objetivos climáticos e de conservação da biodiversidade é clara, mas o cuidado é necessário ao tratar dessa integração com atenção à agenda de financiamento para a implementação tanto do Acordo de Paris quanto do Marco Global de Biodiversidade Kunming-Montreal.

“Assim como não haverá sociobiodiversidade, também não haverá mitigação das mudanças climáticas sem territórios indígenas e de comunidades tradicionais protegidos e conservados, com desmatamento e conversão zero de ecossistemas”, enfatiza.

Eidt destaca ainda que é essencial garantir recursos adicionais e complementares, evitando a prática de dupla contagem que alguns países ricos cogitam para demonstrar seus compromissos de cooperação internacional.

“Uma abordagem que promova a convergência e reconheça a interdependência dos objetivos das três convenções da Rio 92 é fundamental. As decisões e ações políticas não podem tardar.”

 

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COP16: Espaço Brasil na Conferência das Nações Unidas para a biodiversidade promove debates sobre restauração ambiental e desafios do Cerrado (30/10/24)

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Autoria: Andreza Baré / Assessoria de Comunicação ISPN

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