Associações indígenas e de comunidades quilombolas fecham contratos com Programa de Aquisição de Alimentos da Companhia Nacional de Abastecimento
Uma importante política para a promoção da soberania alimentar e para a geração de renda em territórios de povos indígenas e de povos e comunidades tradicionais começou a ser colocada em prática no Maranhão. Associações indígenas e de comunidades tradicionais tornaram-se fornecedoras do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) executado pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab).
Entre elas, está a Associação Comunitária Mainumy, do povo Guajajara, da Terra Indígena (TI) Rio Pindaré, onde há produção de alimentos de origem animal e vegetal, com apoio da assistência técnica fornecida pelo ISPN, no âmbito do Plano Básico Ambiental da Estrada de Ferro Carajás – Componente Indígena Awá e Guajajara (PBA-CI/ISPN). A Mainumy e o Clube de Mães Boa Esperança do Povoado Coquinho, comunidade quilombola do município de Jenipapo dos Vieiras, foram as primeiras a se tornarem fornecedoras do PAA, nessa modalidade, no Maranhão, em dezembro de 2023.
Nos territórios indígenas, a abertura para o fornecimento de alimentos para o PAA é vista com entusiasmo. No último dia 21 de maio, Francisco Gomes Timbira, da Aldeia Piçarra Preta, na TI Rio Pindaré, fez uma entrega de 127 quilos de frango caipira. Anteriormente, ele já havia entregado 800 quilos de milho e 140 quilos de vinagreira. Francisco conta que sempre encontrou dificuldade na comercialização e não conseguia preços satisfatórios para cobrir os custos da produção.

“O PAA paga melhor do que a gente conseguia levando a produção para tentar vender na cidade. Eu já estou me preparando para fornecer mais. Tenho uma macaxeira que tá quase boa e mais frango para abate”, afirma. Francisco possui um pequeno comércio em casa que atende os “parentes” da própria Aldeia Piçarra Preta, mas o fornecimento para PAA tornou-se uma fonte de renda mais importante.
Ele é apenas um dos produtores e produtoras da TI Rio Pindaré que estão fornecendo alimentos para o PAA por meio da Associação Mainumy. Márcio Vieira da Silva Guarani integra um grupo, também da Aldeia Piçarra Preta, que recebe assistência técnica do ISPN em parceria com o Núcleo de Extensão e Desenvolvimento da Universidade Estadual do Maranhão (LABEX/UEMA) para o cultivo de peixes em viveiros. São três tanques com capacidade total para 7,5 mil peixes piau-açu que atingem de 750 gramas a um quilo cada unidade. A estrutura da piscicultura conta com aeradores (um para cada tanque), poço artesiano, bomba e um galpão/depósito.
“Levou bastante tempo para a gente construir tudo isso aqui. Primeiro foram feitos os tanques. Depois o poço. Mas logo na primeira vez, nós tiramos mais de 7 mil peixes. Então, é muito bom esse apoio”, afirma Márcio Guarani sobre a assistência técnica fornecida pelo ISPN. Entre março e abril deste ano, o grupo forneceu mais de 600 quilos de peixe piau-açu para o PAA.
“A piscicultura está entre as atividades que são apoiadas pelo subprograma de Etnodesenvolvimento do PBA-CI/ISPN. Ela é uma grande aspiração dos indígenas porque o contexto da região do Vale do Pindaré é de atividade aquícola muito forte. Então isso faz parte do dia a dia deles, a criação de peixes em viveiros, em cativeiro”, avalia o agrônomo, assessor técnico do ISPN e coordenador do subprograma de Etnodesenvolvimento, Tainan Pereira.

Alimento saudável
A Associação Mainumy recebe os alimentos e repassa para a Associação de Pais e Mestres Indígenas Guajajara que por sua vez distribui para as escolas públicas localizadas nas aldeias da TI Rio Pindaré. A primeira entrega foi realizada no dia 6 de fevereiro de 2024. “As crianças estavam comendo coisas industrializadas. Isso estava criando um problema para as crianças e também para os pais e até para as escolas. Agora a gente tá levando comida natural. Isso daí é importante porque a comunidade tá participando da venda, tá vendendo para escola também. Isso gera renda e incentiva o trabalho. Agora nós estamos produzindo para atender direto as nossas crianças”, comemora o presidente da Associação Mainumy, Francisco Viana Guajajara.
“Nós vemos essa produção do PAA como uma grande fonte de renda para a comunidade e uma melhor condição de vida também para os alunos, porque, anteriormente, a compra era feita na cidade. Sabemos que, na cidade, tanto no peixe como no frango, eles usam produtos que prejudicam a saúde das pessoas. Então, essa produção que atende a demanda da escola está sendo vantajosa e vista de uma maneira muito positiva tanto por nós da escola, da Educação, quanto pela comunidade”, complementa Gerlan de Oliveira Viana Guajajara, agente administrativo da escola da Aldeia Januária, também da TI Rio Pindaré.
Os alimentos são muito variados e têm disponibilidade sazonal. Na lista de março e abril, por exemplo, estão abóbora, acerola, cheiro verde, coco seco, feijão em vagem, maxixe, melancia, milho verde, pepino, quiabo, vinagreira e também frango caipira e peixes piau-açu e tambaqui. Nas próximas entregas, alguns desses ítens já não estarão disponíveis, como é o caso da melancia que se desenvolve apenas no período de chuvas. Por outro lado, é esperado o fornecimento de uma variedade maior de peixes, porque além daqueles criados em viveiros, com fim do período de piracema, irão entrar os peixes que são pescados diretamente no Rio Pindaré, que dá nome à Terra Indígena.

Conforme a Conab, o PAA da TI Rio Pindaré foi contratado no valor de R$ 603.517,33. Os produtores e produtoras Guajajara têm até dois anos para executar o contrato, isto é, para fornecer alimentos até que seja alcançado esse valor limite. No entanto, a expectativa é que esse limite seja atingido ainda este ano, ou seja, no primeiro ano do contrato. “Há muita produção aqui na TI Rio Pindaré e nós estamos nos preparando para que a Associação Mainumy possa concorrer a outro edital e renovar o contrato do PAA já, no máximo, no início do próximo ano”, afirma o agrônomo e assessor técnico do ISPN, Celso Barros.
Entraves perduraram por muito tempo
Esses mesmos alimentos, que agora em parte vão para o PAA, também são consumidos pelas famílias nas próprias aldeias. Então não há problema de parte dessa produção abastecer as escolas nos territórios indígenas porque são alimentos que as crianças já consomem nas suas casas. Contudo, o caminho percorrido até que isso fosse reconhecido e possível foi bem longo.
O PAA é uma política nacional que existe desde 2003, mas entraves burocráticos impediam que muitos povos indígenas e povos e comunidades tradicionais participassem do programa. Somente em dezembro de 2023, a Associação Indígena Mainumy e o Clube de Mães Boa Esperança do Povoado Coquinho tornaram-se fornecedoras do PAA no Maranhão, conforme a Resolução Nº 2, de 15 de junho de 2023, do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome que autorizou a aquisição e doação de alimentos dentro da própria terra indígena, território ou unidade de conservação para a garantia da segurança alimentar e nutricional.
“É uma política excelente. No modelo que existia, anteriormente, quando os indígenas ou quilombolas conseguiam fornecer, era para fora de seus territórios. Agora temos um avanço muito grande que facilitou muito. Eles produzem o que originalmente sempre produziram, o que tem vocação para produzir ou que escolheram produzir”, afirma Cysne Aderaldo, superintendente da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) no Maranhão.
Esses entraves só começaram a ser contestados a partir de 2017, quando o Ministério Público Federal e órgãos de fiscalização sanitária do Estado do Amazonas elaboraram a Nota Técnica 01/2017, que observa o “direito dos povos indígenas ao acesso à alimentação diferenciada, com respeito aos seus processos próprios de produção para o fornecimento da merenda escolar”.
O documento leva em consideração a ideia de autoconsumo ou consumo familiar dos povos indígenas, em que a produção e o consumo final permanecem no contexto familiar. A Nota Técnica recomenda a dispensa do registro sanitário na aquisição de proteína e de produtos vegetais processados, provenientes das próprias comunidades ou aldeias, nas compras públicas.
Em outras palavras, os autores da Nota Técnica concluíram que é possível dispensar de registro, inspeção e fiscalização os alimentos produzidos nas comunidades indígenas desde que esse alimento seja destinado ao consumo interno dos próprios indígenas, como, por exemplo, no ambiente das escolas localizadas dentro das aldeias, o mesmo se aplica para o caso de comunidades tradicionais. “Assim, considera a existência de mecanismos tradicionais de controle alimentar dentro da cultura destes povos e apresenta entendimento de modo a adequar entraves burocráticos desconectados dos hábitos e tradições alimentares quanto aos padrões de vigilância sanitária”, diz o texto.
Em seguida, a partir desse posicionamento, a Fundação Nacional do Povos Indígenas (Funai), ainda em 2017; o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), em 2019; o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), em 2021; e o Fundo Nacional de Desenvolvimento (FNDE), em 2023, publicaram Notas Técnicas semelhantes, reconhecendo, de uma maneira ou de outra, o conceito do autoconsumo e o direito dos povos indígenas e povos e comunidades tradicionais de fornecer alimentos para suas próprias comunidades.
Finalmente, em 15 de junho de 2023, o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome publica a Resolução Nº 2, que trata da destinação dos alimentos adquiridos com recursos do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). O artigo 6º dessa Resolução autoriza a aquisição e doação de alimentos dentro da própria terra indígena, território ou unidade de conservação para a garantia da segurança alimentar e nutricional, com a ressalva de que esses alimentos devem ser destinados a escolas, cozinhas, unidades de saúde, entre outros equipamentos coletivos de segurança alimentar e nutricional. E ainda dispensa o registro, inspeção e fiscalização desses alimentos, também, desde que consumidos no próprio território da comunidade.
Catrapovos
Nesse ínterim, em fevereiro de 2021, o MPF instituiu a Catrapovos: uma mesa de diálogo permanente para tratar de alimentação tradicional, compras públicas e segurança alimentar de povos e comunidades tradicionais com a participação de instituições governamentais e da sociedade civil que atuam no tema, entre estas o ISPN.
O advogado e assessor técnico do ISPN, Vitor Hugo Moraes, observa que o histórico de defesa que o Instituto faz da sociobiodiversidade, da inclusão produtiva, da segurança e soberania alimentares se alinha completamente aos objetivos da Catrapovos. Nesse sentido, o ISPN tem contribuído para a construção e consolidação da Catrapovos no Tocantins e apoiado a criação de uma Mesa de Diálogos no Maranhão, por meio da Rede de Agroecologia (Rama).
“Vale destacar que o Maranhão é rico em diversidade sociocultural, possuindo centenas de povos e comunidades tradicionais que produzem, colhem, pescam e consomem alimentos saudáveis nas diversas paisagens do estado. A Catrapovos reunirá importantes atores da sociedade civil e Poder Público para elaborar estratégias para a comercialização desses alimentos à alimentação escolar, assim, fortalecendo a agricultura familiar, a sustentabilidade comunitária, a educação e as tradições de cada povo e comunidade. Será um importante espaço para pensar e executar o aperfeiçoamento da inclusão produtiva das comunidades”, afirma Moraes.
A Catrapovos já contribuiu para inserção da alimentação tradicional na merenda escolar em mais de dez estados brasileiros.
Etnodesenvolvimento
O ISPN executa o Plano Básico Ambiental do Componente Indígena Awá e Guajajara (PBA – CI) da duplicação da Estrada de Ferro Carajás (EFC), empreendimento da mineradora Vale. O cumprimento do PBA-CI é uma obrigação da Vale cujo objetivo é mitigar impactos decorrentes do empreendimento. Isso ocorre por meio do planejamento de ações para o gerenciamento das questões ambientais relativas à EFC. A preparação e execução do PBA-CI também é condição para a emissão da licença de instalação e operação da ferrovia.
Entre os subprogramas previstos no PBA-CI da Estrada de Ferro Carajás está o de Etnodesenvolvimento que tem o viés da organização comunitária, da comercialização/empreendedorismo e da agroecologia. Entre as ações do Etnodesenvolvimento está a oferta de Capacitações Técnicas em Atividades Produtivas (avicultura, piscicultura, horticultura, suinocultura e sistemas agroflorestais) para comunidades das Terras Indígenas (TI) Rio Pindaré e Caru, cujo objetivo é melhorar a produção de culturas e criações que os indígenas já manejavam.
Foi em uma dessas capacitações, durante discussão sobre acesso a mercados institucionais, que os indígenas se depararam com o edital do PAA/CONAB.
As capacitações foram viabilizadas por meio de um Acordo de Cooperação Técnica entre o Núcleo de Extensão e Desenvolvimento da Universidade Estadual do Maranhão (LABEX/UEMA) e o ISPN, parceria que foi mediada pela Fundação de Apoio ao Ensino, Pesquisa e Extensão (FAPEAD), instituição ligada à UEMA. “Nossa equipe de professores e técnicos, junto com os alunos de graduação e pós-graduação, foi convidada a oferecer capacitações para os indígenas em agropecuária, produção animal, produção vegetal, piscicultura, e comercialização, especialmente”, explicou o professor da UEMA, doutor em Agronomia e gerente do LABEX, Itaan Pastor.
“Para além das capacitações vislumbramos a possibilidade de produção de conhecimento, com trabalhos de conclusão de curso, artigos e apresentações acadêmicas. Nesse sentido, foi acertada a decisão de envolver o LABEX/UEMA nesse processo, de modo que possamos desenvolver um trabalho de assistência técnica e extensão que dialogue com o conhecimento da academia e o conhecimento tradicional das comunidades. E além de tudo isso, envolver indígenas como bolsistas do projeto de capacitação”, complementa a coordenadora do Programa Maranhão do ISPN, Ruthiane Pereira.
Por Cássio Bezerra / Assessor de Comunicação do ISPN