Na contramão do estado que mais desmata no país, povo Guajajara conduz projeto para proteger e retomar paisagens ricas em biodiversidade na Terra Indígena Rio Pindaré
Na Terra Indígena (TI) Rio Pindaré, no Maranhão, a parceria entre dois grupos locais tem um objetivo comum: retomar práticas ancestrais, que anciãs e anciãos guardam na memória sobre a riqueza de nascentes e florestas diversas no território. Essa é a principal proposta do projeto executado pelo grupo de mulheres indígenas Wiriri Kuzá Wá e a Brigada Voluntária Indígena, que tem como título “Mãe D’água: das nascentes para reflorestar mentes”.
O povo Guajajara habita a TI, que possui uma extensão de 15.002,91 hectares, com uma população de 2 mil pessoas. O território é quase inteiramente localizado no município de Bom Jardim, distante pouco mais de 240 km da capital São Luís, com uma pequena porção (2%) no município de Monção. Na área, o Rio Pindaré dá nome ao lar dos Guajajara e marca uma parte das divisas da TI.
A iniciativa das mulheres e a parceria proposta por meio do projeto segue na contramão dos dados alarmantes de desmatamento no Maranhão. Conforme o Relatório Anual do Desmatamento no Brasil (RAD) 2023 do MapBiomas, o estado é primeiro lugar na perda de vegetação nativa, com uma área desmatada que contabiliza 331.225 hectares. Isso significa um aumento de 95,1% no desmatamento, o que implica na nova posição de líder do desmatamento assumida pelo estado do Maranhão em 2023.
É em um cenário de resistência que mais de 50 mulheres da Wiriri, juntamente com 15 homens da Brigada Voluntária, empenham uma luta para fortalecer as práticas culturais e ambientais de seu povo. Excursões na mata ocorreram em abril deste ano nas aldeias Januária; Piçarra Preta, Novo Planeta e Guarimã, para identificar cinco nascentes de igarapés prioritárias para o reflorestamento e para o plantio de 80 mudas de espécies nativas nas margens, principalmente frutíferas. No geral, as atividades propostas pelo projeto envolvem jovens, adultos e anciãos das nove aldeias do território, com destaque para as mulheres indígenas.

Durante dois dias de excursões, os grupos visitaram esses cinco pontos prioritários de nascentes, se deslocando de barco pelo rio ou em caminhada por babaçuais. Com a identificação das nascentes, houve a qualificação e marcação dos pontos por GPS, acompanhado do plantio de mudas de juçara, bacaba e cupuaçu, provenientes do viveiro da Brigada Voluntária na Aldeia Januária.
Para a liderança indígena local Vanussa Viana Guajajara, participar das excursões foi um momento de reconexão com a natureza, um preenchimento na memória das histórias contadas pelos mais velhos sobre a riqueza de animais e paisagens outrora intocadas em diversos pontos da TI. Além, de membro da Wiriri Kuzá Wá, Vanussa faz parte da Articulação de Mulheres Indígenas do Maranhão (AMIMA), é acadêmica de Ciências Biológicas na Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), agricultora familiar e pescadora artesanal.
“É uma parte da história que estava faltando, um vácuo que precisava ser preenchido. Meu pai já foi cacique e contava sobre os lugares que visitamos, dizia ‘Ah, eu conheci, a gente fazia esse monitoramento’. Isso desde a infância dele e dos ‘mais antigos’. Mas, só quando a gente começa a entender que o espiritual vem antes de qualquer outro tipo de articulação, a gente se sente mais fortalecido. Sentimos a necessidade desse vínculo, é uma carga de energia que não pode ser explicada, mas é sentida por cada um que compartilha desses momentos”, comenta Vanussa.
O resgate das memórias da paisagem da TI com as anciãs e anciões é uma etapa essencial das atividades do projeto, onde a vivência completa esses relatos que estão nas lembranças dos adultos e são repassados aos mais jovens. Durante as excursões na mata, além de ser uma oportunidade para visualizar aquilo que os “mais antigos” contam em suas histórias, foi um momento de relembrar alguns cenários já observados por algumas das participantes há tempos. É o caso da agente de saúde Eloide Rodrigues Guajajara, que também quer contar essas histórias aos seus filhos e netos.
“Vi esses lugares quando criança, mas são poucas as lembranças. A luta para preservar nosso território vem desde a minha mãe, foi uma luta da minha vó e é uma luta que vem antes delas. Quero mais tarde poder mostrar para os meus filhos e netos, quero deixar minha história e que as pessoas digam ‘Ela sempre esteve nessa luta, ela sempre esteve aqui’, quero mostrar para eles nossa luta indígena. Para isso, temos que partir para as atividades de reflorestar aquilo que foi perdido”, explica Eloide.

Proteção coletiva: Mosaico Gurupi
A TI Rio Pindaré faz parte do Mosaico Gurupi, um conjunto de áreas protegidas composto por seis Terras Indígenas e uma Unidade de Conservação, extremamente importante para a conservação do bioma Amazônia. Invasões ilegais do território para retirada de madeira, caça e pesca impactam há anos, alterando a vegetação nativa e levando a escassez de algumas espécies de animais na área. Além desses fatores complexos, existem os centros urbanos no entorno do território, a BR-316 que transpassa por toda a TI e as queimadas criminosas que atingem a vegetação, principalmente no período da seca.
Nesse contexto, os brigadistas indígenas da TI possuem grandes desafios na proteção ativa do território. Por conhecerem os pontos de mais difícil acesso na mata pelas ações de monitoramento, os brigadistas empenham esse trabalho nas atividades de mapeamento e reflorestamento. Conforme o chefe de esquadrão da brigada, Rafael Caragiu Guajajara, por conta da rica biodiversidade, com variedade de animais e das espécies de árvores e plantas, os indígenas possuem o constante esforço para manter o que se tem e se empenham para recuperar o que foi perdido.
“O nosso desafio hoje é manter e proteger nosso território de invasões, caçadores, madeireiros e vários outros que querem se beneficiar do que existe em nosso território, que querem usufruir de maneira ilícita do que existe aqui, isso prejudica todo o meio ambiente. Nossa terra foi explorada de maneira ilegal por invasores e, com isso, já perdemos igarapés e nascentes. Mas queremos trazer de volta o que foi perdido, reflorestar as nascentes, para manter o que existe, mas também recuperar”, diz Rafael.

Segundo a coordenadora-geral da Wiriri Kuzá Wá, Marisa Caragiu Viana Guajajara, alguns cenários da devastação promovida por não indígenas no território foram revertidos, mas há muitas ações de proteção e recuperação que precisam ser aplicadas de maneira contínua, ressaltando a grandiosidade do projeto, ainda mais diante dos dados de desmatamento no Maranhão. O trabalho da própria organização de mulheres, brigadistas e outros grupos de proteção territorial, como Guardiões da Floresta e Guerreiras da Floresta, permite a manutenção de tradições ancestrais como a Festa da Menina Moça, que conta com a carne da caça de animais para o preparo do moqueado.
“A floresta e a água são elementos que fazem parte da espiritualidade Guajajara, mas essa não é apenas uma execução pontual. Minha ‘vó’ conta que nosso território foi muito devastado, mas que agora voltamos a encontrar caças para as nossas festas e rituais. Então, quando as atividades do projeto terminarem, daremos continuidade ao monitoramento. Mapear as nascentes, participar do plantio de mudas e conhecer mais do nosso território por meio do projeto são coisas que me emocionam. Isso é essencial para a nossa questão espiritual e ancestral”, declara Marisa.
Mãe D’água: das nascentes para reflorestar mentes
O projeto executado pela organização das mulheres da TI Pindaré, Wiriri Kuzá Wá, e Brigada Voluntária conta com a parceira da Associação Indígena Comunitária Mainumy (AICOM) e tem recursos do Podáali (Fundo Indígena da Amazônia Brasileira). O Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), por meio do projeto Aliança dos Povos Indígenas pelas Florestas da Amazônia Oriental: Conservar, Proteger e Restaurar, que tem apoio da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), fornece apoio e assessoria técnica na elaboração e nas atividades de campo. Além do mapeamento das nascentes e do reflorestamento, as anciãs, adultos e jovens Guajajara realizaram a construção conjunta de etnomapas após as ações em campo, reunindo o conhecimento dos participantes sobre o território e os locais visitados.
O assessor técnico do ISPN, Robert Miller, participa das atividades do projeto e reforça que os momentos de restauração envolvem principalmente a mobilização e interação entre diferentes coletivos e gerações, sendo o plantio um componente fundamental da gestão das paisagens na TI Rio Pindaré. Ele frisa serem trocas de informações e conhecimentos essenciais e indispensáveis para a gestão territorial e ambiental, postulando assim uma “restauração biocultural”, ao revisitarem locais antigos de moradia, o uso de recursos naturais, relembrar eventos e pessoas que ocuparam esses espaços e as relações sociais e de parentesco associadas.
“O projeto abrange a discussão das ações no passado que resultaram na degradação das florestas e as ações necessárias para o futuro, como iniciativas de restauração e melhor gestão do território e seus recursos. Envolve não só o plantio e os cuidados (podas, prevenção do fogo, limpezas, etc.), como também uma discussão mais geral sobre as espécies, seus usos e sua importância cultural. Dessa forma, podemos falar em uma ‘restauração biocultural’, que abrange tanto os aspectos ambientais e biológicos, como os culturais”, explica Robert.

A assessora técnica do ISPN, Caroline Yoshida, reforça que por meio do Programa Povos Indígenas, o Instituto tem atuado no fortalecimento dos coletivos e das organizações das Terras Indígenas que compõem o Mosaico do Gurupi. “Apoiamos tecnicamente o projeto, o qual tem como executores a organização de mulheres Wiriri Kuza Wa e os brigadistas da TI Rio Pindaré, com atividades que envolvem reflorestamento e campanhas de sensibilização sobre a importância de suas nascentes, em uma proposta que tem por objetivo também fortalecer as práticas culturais. Assim, contribuímos com as estratégias de gestão territorial e ambiental para o território”, completa Caroline.
O projeto inclui em seu cronograma a aquisição de mudas para o plantio de Sistemas Agroflorestais (SAFs) em dois hectares de áreas de terra firme degradada no território, a realização de rodas de conversas, capacitações para monitoramento dos plantios e articulações com outras organizações. Em mais uma atividade do projeto, a Wiriri e os brigadistas abriram a Jornada Ambiental da UEMA, campus Santa Inês, no dia 22 de junho. Na ocasião, palestraram sobre as atividades do projeto, a importância das nascentes no território e a conservação do Rio Pindaré, que precisa ser um trabalho coletivo.

Texto: Ariel Rocha/Assessora de Comunicação do ISPN