No Maranhão, acordo judicial entre organizações da sociedade civil, órgãos públicos e governo garantirá que todo licenciamento ambiental no estado só seja autorizado com a anuência dos povos.
Na tarde da última quarta-feira, 23, a Defensoria Pública do Maranhão, a Federação dos Trabalhadores Rurais de Agricultores e Agricultoras do Estado do Maranhão (FETAEMA) e a Sociedade Maranhense de Direitos Humanos firmaram acordo judicial com o governo do estado para garantir que qualquer licenciamento ambiental só seja autorizado após os povos e as comunidades tradicionais diretamente afetadas pelos empreendimentos serem ouvidas. Também estiveram presentes representantes da sociedade civil, entre eles o ISPN, e o Ministério Público do Estado, que contribuíram com a discussão.
O licenciamento ambiental é obrigatório para projetos e atividades que utilizem de recursos naturais ou que possam causar algum tipo de impacto danoso ao meio ambiente. É um tipo de fiscalização e autorização para que essas iniciativas possam ser desenvolvidas nas regiões. Acontece que muitos desses empreendimentos chegam em território ocupados por pescadores artesanais, indígenas, quilombolas, ribeirinhos dentre outros povos que dependem desse meio ambiente para sobreviverem. Não é raro que o Licenciamento seja dado aos grandes projetos sem considerar os impactos às populações tradicionais. Isso, inclusive, é um dos grandes responsáveis pelo acirramento dos conflitos no campo e a perseguição a essas populações.
Edmilson Silva é agricultor familiar e mora na comunidade Araçá, na zona rural do município de Buriti, interior do Maranhão. No primeiro semestre de 2021, sua comunidade foi atingida por uma “chuva de agrotóxicos” lançada por avião pertencente a uma grande plantação de soja vizinha ao seu território. Durante três dias, o veneno afetou os moradores locais, causando graves queimaduras em crianças e também afetando idosos, que até hoje sofrem as consequências dessa ação. O dono do empreendimento, Gabriel Introvini, foi multado por procedimento ilegal.
Infelizmente, casos assim, ilegais ou com autorização, fazem parte do cotidiano dos povos e das comunidades tradicionais. Garantir que eles consigam ter autonomia e protagonismo nos processos que concedem o Licenciamento Ambiental a grandes empreendimentos pode minimizar esses impactos e subsidiar a luta legítima pela proteção territorial. Saiba mais sobre o caso na comunidade Araçá clicando aqui.
A audiência realizada em São Luís, capital do estado, não só garantiu a suspensão das licenças concedidas em áreas tradicionalmente ocupadas, como previu que as demandas dos povos sejam fator essencial para que o licenciamento seja autorizado daqui para frente. Ou seja, o Estado deverá garantir consulta livre, prévia e informada adequada aos parâmetros da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Um marco histórico para a pauta socioambiental, especialmente em um cenário nacional de retrocessos para essa agenda.
“Tô no Mapa” como instrumento para garantia do acordo
Para fortalecer a incidência em favor dos povos, durante a audiência, o ISPN apresentou a iniciativa “Tô no Mapa”, uma plataforma que permite o automapeamento dos territórios das comunidades. Esse instrumento será estratégico para subsidiar o Estado do Maranhão no compromisso firmado judicialmente para fazer um cadastro com todos os povos e comunidades da região, considerando ainda dados de certificação da Fundação Palmares, de Terras Indígenas demarcadas, do INCRA, do Instituto de Terras do Estado e do Cadastro Ambiental Rural Coletivo (CAR), além de uma certificação que o próprio Estado já está emitindo às comunidades.
“Além dos cadastros oficiais, o acordo ainda possibilita que as próprias comunidades possam reivindicar sua inclusão no banco de dados por meio da autoidentificação, o que pode ser feito, inclusive, pelo ‘Tô no Mapa’. Essa possibilidade amplia a garantia de que todas as coletividades que se identifiquem como tradicionais possam assegurar seu direito à consulta livre, prévia e informada”, comentou Vitor Hugo Moraes, assessor para Políticas Públicas do ISPN, que também afirmou que esse foi um processo articulado entre sociedade civil e órgão públicos para que o Estado se comprometesse com os direitos dos povos.
Com o acordo homologado e já em vigência, será obrigação do Estado implementar a consulta livre, prévia e informada considerando ainda as especificidades de cada comunidade. Em termos práticos, isso significa que cada povo e comunidade tradicional possuirá autonomia para determinar como qualquer protocolo que interfira em seu território ou área de influência será formatado.
Essa vitória abre importante precedente para estimular que a sociedade civil de outros estados possam se movimentar e cobrar de seus governos acordos nesse sentido, mesmo que juridicamente. Além disso, é um movimento que demonstra a força da articulação de base para incidência política, abrindo caminhos para que outras agendas possam ser disputadas no campo governamental.
PL em trâmite no Senado pode trazer graves impactos socioambientais ao país
O Projeto de Lei nº 2.159/2021, conhecido como “PL da Boiada”, cria uma Lei Geral para o Licenciamento Ambiental, que promove um desmonte nas regras para a concessão dessa medida. Na contramão da vitória conquistada no Maranhão, caso o PL seja aprovado no Senado, segundo especialistas, será um verdadeiro desmonte das políticas socioambientais no Brasil, o que também trará mais fragilidade aos povos e comunidades tradicionais na luta por seus territórios.
Segundo informações do Instituto Socioambiental (ISA), a maior parte dos empreendimentos precisaria apenas realizar um procedimento autodeclaratório na internet, sem nenhum tipo de análise prévia dos órgãos ambientais, e sua licença seria emitida automaticamente. Vários dos controles e das condicionantes dos impactos socioambientais das obras seriam simplesmente abolidos, inclusive os de prevenção ao desmatamento e da garantia de se ouvir as populações tradicionais impactadas.
“Enquanto no Maranhão temos tentado avançar na proteção aos direitos dos povos e comunidades tradicionais, o PL do licenciamento demonstra que a agenda de retrocessos ambientais segue com força no congresso nacional. Se aprovada, as novas regras de licenciamento ambiental fragilizarão os direitos socioambientais e podem causar ainda mais impactos às comunidades”, comenta Vitor Hugo.
Sobre o Tô no Mapa
O Tô no Mapa é um aplicativo desenvolvido para que povos, comunidades tradicionais e agricultores familiares (PCTAFs) brasileiros realizem o automapeamento de seus territórios. Uma ferramenta acessível e gratuita, construída a partir do diálogo entre diversas comunidades e organizações sociais. Com mais esse instrumento político, Os PCTAFs podem fortalecer sua luta por direitos territoriais ainda não reconhecidos. É a oportunidade de mostrar que eles também estão no mapa!
Esta é uma iniciativa do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) junto ao Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), com apoio da Rede Cerrado.
Visite o site da iniciativa: tonomapa.org.br
Foto: acervo ISPN/Raisa Pina